terça-feira

A Espuma dos Dias

Molda sem agarrar, humedece sem molhar, limpa sem lavar. Não é feita para a permanência, previsibilidade, segurança ou confiança. A espuma arquitecta as mais belas formas, abstractas ou que nos abstraem e leves ou que nos levitam. É um vazio que se aparenta cheio. Espreme-se a espuma das vinte e quatro horas e obtém-se umas gotas, uns minutos de felicidade. É a vida um enorme campo de água e são as alegrias as ondas despedaçadas nas praias. Quem contrarie esta vivência e opte pela espuma eterna vive nas nuvens, efémeras por definição, e malgrado delas cai, em solo pouco flutuante, menos manso e, sem dúvida, nada espumoso.


Modos d'Andar

Andava num desses dias, cabisbaixo. Sem enfrentar os olhos dos outros, olhava para as suas partes mais próximas do chão. Uma rapariga tinha ambos os pés a caminhar em fila indiana, como se o passeio fosse insuficiente para suportar dois sapatos lado a lado. Um rapaz parecia puxar as suas pernas com a força que as suas mãos exerciam nos bolsos das calças largas. Os saltos da senhora inseriam pegadas profundas na terra batida, semelhantes aos sinais que as galinhas deixam na areia ao debicarem-na. O senhor levantava lenta e esforçadamente os pés da calçada; esta, feita de pastilhas elásticas usadas de fresco, prendia as solas, já de si pesadas. Uma pose, por definição parada, tem muita beleza, mas é mais encantadora a naturalidade do passo a passo.


2 de Paleio

Perguntei "Como estás?" e parei para escutar a resposta. Naquele dia quis mais que o vocabulário corriqueiro, já memorizado pelos encontros sociais superficiais.
Alguém que aparecesse e, sem pretensiosismo, me descrevesse os factos; mais, maior do que isso, que os interpretasse, os sentisse e mos manifestasse. Ansiava por uma história continuada: "eu vi, eu pensei, eu concluí". E tal, ainda assim, não me era suficiente. Precisava de uma interacção humana. O hálito, os tiques, o menear do pescoço, os olhos para a direita e para a esquerda, as pupilas para trás e para a frente, a atitude gestual iniciada no rosto e concluída pelas mãos. Uma boa conversa vale mais que as mil palavras que contém.

Ponto Final

Preferia repetir as histórias do seu dia-a-dia, colocando-as no rodapé (onde se escreve o auxiliar e não o principal) através da expressão “idem”. Assustava-a virar a página. Perturbava-a as instabilidades dos inícios e a alteração ou, pior, a conclusão dos hábitos. Não tinha medo de que o mundo acabasse, mas receava as condições em que ele recomeçaria – afinal, qualquer fim gera um princípio. Ao estabelecer um ponto final, cria-se vida. Por bela ironia se tem, porém, que o ponto mais final que conhecemos é a morte. Uma menção, contudo, aos crentes na reincarnação, cujos pontos finais são reticências…

A Franqueza

A franqueza magoa a quem a ouve e a quem a diz. Dizer bem sem este sê-lo é uma mentira matreira. Dá conforto ao conformismo. A falta de sinceridade apodrece a alma e adormece as ideias. Se é injusto ter timidez, mais gravoso é o tímido que mantém as injustiças por não denunciá-las. Ouvem-se zunidos ininteligíveis pelas costas.
Paira uma atmosfera cinzenta de milhares de olhos que nos seguem por não haver uns que nos tivessem tomado de frente. O fala-barato descai-se, claro. Surge uma nesga de luz e logo os encapuçados, envergonhados, procuram uma sombra. O desbocado não é corajoso, mas é cínico o silencioso.

A Pesca

Ao longe, no molhe, avistam-se silhuetas humanas e linhas a debruçarem-se na diagonal sobre a água. Pescadores. O peixe que não morde, o vento a chocalhar com violência o mar, a rocha escorregadia, o vizinho a açambarcar a pescaria, a lua nova, vazia de luz e a espera, a eterna espera. A pesca parece é enfadonha e quem dela quiser dar pior imagem, apelida-a de cruel para os animais. O homem não procura dor, mas prazer. O prazer do peixe engatado, o do silêncio, o da temporária solidão, o da contemplação das ondas, o da camaradagem e até o da ciência – ou não a é o conhecimento de tabelas lunares e de marés e de técnicas e instrumentos?

O Mau Condutor

Tomava na minha vista os corpos corcundas das pessoas que conduzem. Passavam à minha frente, transversalmente, cabelos aos caracóis, propositados ou descuidados, caras que iam para casa, sorrisos de quem compreendeu uma graçola radiofónica ou despistados que se enganaram na faixa e procuram, pelo retrovisor, um automobilista que compreenda as suas inadvertências. É uma viagem corriqueira de carro aquela que todos fazemos. Parado por um polícia de cara vermelha e redonda, eu assisto a tudo isto. E desperto com uma buzina nas minhas costas - o meu corpo é um mau condutor da luz verde que entra no olho até ao pé que activa o acelerador. Senti-me um isolante da velocidade.

Bebé-Sol

Numa aberração. O pai não reconhece o filho, noutra monstruosidade, a mãe d corpo não o é de instinto – em qualquer dos casos, a criança nasce abandonada. Dessas doenças, contudo, não trata este texto. A obtenção de um descendente é uma revolução semelhante à passagem do geocentrismo para o heliocentrismo como teoria astronómica vigente. O Casal-Terra, à volta do qual orbitavam minutos de oco e pequenos prazeres individuais, sem ser extinto perde a sua importância absoluta. É o Bebé-Sol quem passa a ser o centro, dominando tempo e temperatura: é ele quem controla o dia e a noite e quem estabelece a energia dos estados de espírito.


Pés Arejados

A aragem atravessa o espaço entre os dedos, as solas de pele olham para o chão sem lhe tocar, o sol sopra a cor acastanhada para os peitos do pé. Aqueles dois peregrinos, que levaram a minha fé, a curiosidade, a tanto lado, ali se abanam, ao ar livre. Por fim, para eles reparo além das suas bolhas, dores de articulações, unhas longas e comichões. Dou-lhes um pouco de liberdade, de vistas - raras vezes tiro as atacas, que são as trelas dos meus pés.
Na excessiva protecção em que os tenho acometido, caminham sempre cegos, sem saberem para onde vão. Eu sei bem de mais os meus destinos: demasiado preso à segurança, só percorro percursos já conhecidos, piso relva que não plantei, areia que não moí, tapete que não teci. Por isso não ando descalço – os meus pés entediar-se-iam de fazer os mesmos trilhos todos os dias.

Glândula da Sobrevivência

A glândula da sobrevivência tem como principal hormona a independência. Esta substância capacita o indivíduo de agir por si mesmo em situações de isolamento - na falta de produção daquela, o ser morre por ser incapaz de se sustentar com os seus próprios meios. Todavia, nos casos de secreção excessiva, a consequência é semelhante – a criatura torna-se egoísta o que a leva à solidão e, no limite, à morte social.
Ao longo do tempo, verifica-se uma tendência para o aumento de produção da independência. A forma mais natural que se conhece para desacelerar aquela segregação crescente é a paternidade/maternidade. Outras formas, culturais, de controlar a também conhecida por “hormona da autonomia” incluem a obtenção de animais de estimação, o voluntariado humanitário ou a doação de órgãos.

O Caminhante

Vai a pé, procurando pequenas povoações cujas gentes não desconfiam de um homem suado, de mochila no dorso. Seguro de encontrar pessoas que o vão ajudar, confiante de assistir as paisagens que ainda não foram descritas em fotografias, convicto de viver histórias que nunca lera, o viajante adoça e mantém o romantismo da partida. Despoja-se dos confortos de casa e de conhecidos, modera as dores que vêm do corpo, afasta os medos inerentes à solidão – é que só se sabe o que é doce provando o amargo. O caminho agreste de uma serra lusitana autografa-lhe a pele com uma silva. Vemos nós uma cicatriz onde ele vê uma viagem.

Verdade Trindente

Há aí num recanto do universo um arquivo fabuloso. Uma secretária da Verdade teve o hercúleo esforço de organizar todas as conversas e monólogos proferidos pela humanidade. Outra eficaz empregada da mesma entidade, reuniu todas as escrituras assinadas por todo o ser animal que saiba escrever. Uma terceira trabalhadora da dita individualidade, igualmente competente, anotou toda e qualquer obra executada por cada indivíduo humano. Coadjuvada por estas três brilhantes funcionárias, a Verdade ainda não decidiu a qual delas atribuir mais importância; é que o que fica por escrito é uma aproximação do que foi dito, que é uma aproximação do que se fez, que é uma aproximação do que foi projectado em papel.

Mudanças

Retirar, embrulhar, embalar, desempacotar, arrumar as louças, livros, lençóis. Encontrar chaves perdidas, desdobrar papéis outrora úteis, pôr pilhas num brinquedo obsoleto. Revolver objectos do passado, ver como antiguidades aqueles que foram novidades. Pedir uma mãozinha aos familiares, uns músculos aos amigos, e uma carrinha aos conhecidos. Ir para um outro local, deixar o antigo, equilibrar saudosismos com expectativas. Despedir-se de uns vizinhos, apresentar-se a outros. Alterar as rotas e as rotinas. Numa mudança espacial abre-se uma cápsula de tempo, do nosso tempo de vida que é, enfim, a nossa vida.

Equipa de Comunicação

Pertencem à mesma estrutura onde só aparentemente há hierarquia. Cada um com o seu trabalho, ao comunicarem fazem-no ao mesmo nível. O treinador generaliza, cria estratégia sem personalizar, cria alma. O atleta luta no corpo a corpo, homem a homem. Um com clarividência racionalista, outro com garra emotiva. O velho dilema, o do cérebro contra o músculo, é-o apenas numa pessoa só. Os filósofos pensaram sozinhos nesta incompatibilidade humana. Este paradoxo eclipsa-se na presença da cooperação. As equipas, os grupos sociais atingem as perfeições. Não nos esqueçamos que a diferença entre a equipa e o conjunto de jogadores é a comunicação.


Alarmado

Câmaras com detectores de movimentos e infravermelhos, cães automáticos, espantalhos de polícia, arbustos electrificados, grades em brasa, alçapões de jibóias, estilhaços de vidro espetados em beirais de muros de cinco metros, espingardas com sensores de corações e miras telescópicas a eles apontados.

Um intruso que mexa nos meus bens ou pior, nos meus seres de sangue, será atacado por toda a tecnologia de segurança existente. Roubos e raptos assustam-me e ocorrendo uma rápida vez é suficiente para o trauma eterno. O medo, o medo, o medo. Esta sensação, se necessária, em obsessão, não deixa viver. O estranho é que quem dela sofre, como eu, quando assaltado, como eu, se sente aliviado depois do pânico - não fora tão mal quanto o que tinha sonhado.


Os Conselheiros

Na impossibilidade de saber tudo, o cliente fez pedidos de informação. Satisfeito com a clareza, avançou e requisitou serviços de consultoria. Tão bem correu que contratou conselheiros a tempo inteiro. O resultado foi estupendo. Muitas decisões rotineiras deixaram de passar por si. Aliviou-se de assinaturas, desmarcou-se de controlos, abdicou de supervisões. Havia quem disso tratasse: os conselheiros. Estes, sob a capa cinzenta da diplomacia, iam encaminhando e moldando as decisões do seu cliente. Sem que este se apercebesse, aqueles tomaram-lhe o poder. Esquecera-se de aplicar as leis anatómicas às de gestão: não se pode deslocar o centro do corpo para o braço direito sob pena de um desequilíbrio mortal.


Feiticeiro

Quando chega o desespero, a ciência é insuficiente e o espiritismo religioso já não puxa a esperança, viramo-nos para os bruxedos. Alguém atinge o além ao qual nós não chegamos. Ao ver o mundo com outros olhos, vê outro mundo. Num feitiço são-nos transmitidas perspectivas não antes constatadas, recolhidas de sinais que possuímos tão evidentes e para os quais fôramos, até então, tão cegos.
Colocando no caldeirão o ingrediente principal, a nossa debilidade, o mago cria uma poção de confiança que não é dada num comprimido impessoal nem numa oração solitária. É a oralidade entre humanos que dá a força interior ao indivíduo. O feiticeiro, convicto ou trapaceiro, faz-nos acreditar em nós ainda que o primeiro amoleça as nossas fraquezas e o segundo abuse delas.

Leitura de Viagem

Se o país não lê e se as pessoas precisam de histórias, as páginas são as línguas e as bibliotecas os cafés. Não têm os cidadãos dinheiro para viajar e distraem-se a conversar. Ora, diz quem lê que um bom romance é uma viagem. Foi por certo um português, pobre, mas desenrascado, que inventou esse transporte fabuloso: o livro. Estoirando o subsídio de férias na primeira semana daquelas, teve de criar um modo mais económico de diversão. Com aquele veículo de capa e lombada, podia atravessar mundos no seu sofá, conhecer cem pessoas sozinho ou sentir-se rei na sua barraca. Entretanto, outros seguiram-no e, querendo ser mais realistas, pegavam no livro, iam até à estação de caminhos-de-ferro e liam-no enquanto esperavam pelo comboio que nunca apanhavam.

O Casal Perfeito

Um azul, o outro castanho ou um negro e o outro verde. Seja como for, tem de ser um par colorido e brilhante. Convivendo, os elementos do par concluíram em focar o futuro para um mesmo ponto. Não se presuma que foi aquela uma decisão evidente para os dois. Aceite-se que, nenhum deles sendo perfeito, aquele que vê mal ao perto acusa o seu parceiro de miopia. Acresce a dificuldade de terem de chegar ao mesmo espaço ao mesmo tempo. Porquê? Chegando separados, significa que um dominou, outro cegou. Isso não é perfeição por haver desigualdade. O casal ideal não pode estar em confronto, virado frente a frente, mas aliado, lado a lado. Os bons companheiros sabem-no e seguem paralelos, apontando para o mesmo objecto ainda que o compreendam em diferentes perspectivas. A cara à qual estes olhos pertencem é, evidentemente, a face do amor.

Semáforo Surrealista

Ia a atravessar, mas contive-me. Um homem esquisito, na margem oposta, ficava vermelho de fúria e mirava-me fulminante sempre que eu tirava um pé do passeio e o punha no paralelo. O tipo ali parado, a olhar bem de cima para baixo, esperava-me. Tinha as mãos perto do coldre, prestes a espetar-me um tiro, caso o desrespeitasse. Aguentei. Aguardei que o pastor, vestido de verde, tocasse a sua buzina intermitente. Logo depois percebi que era o sinal que ele dava à zebra para que ela, até então deitada, se erguesse, comigo no seu dorso, e me transportasse até ao outro lado da rua.

Amuleto

Não acreditava em superstições bacocas, apesar de me terem dado um amuleto, logo à nascença. Ignorei-o durante anos e anos. Nunca dele me recordava, talvez porque nunca o ter perdido.

Estranha coisa aconteceu quando fui envelhecendo. Aquele talismã ia reluzindo mais fortemente e, se não me deixava dormir à noite, tal era a claridade que impunha, também me iluminava o dia sem céu azul ou amarelo. Passei a tê-lo por perto. Apesar de várias vezes inconveniente e pouco prático, se dele me afastava, os astros entrosavam-se em tal formação que os azares saltavam sobre mim com solas de pregos.

Também não era crente na além-vida. Morria eu, desaparecia-me, e tudo terminava. Até no fim me enganei: mesmo quando o deixei, manteve ele o zelo por mim – apenas aponto que o meu amuleto é a minha família.


Quer uma Flor?

Plante-a. Quem dá valor a uma flor? O agricultor amador. Aquele que espera com ânsia e sossego pela Primavera. Um todo ano aguardando para observar, velozmente, o abotoar, o desabrochar, o explodir, o colorir, o murchar e o morrer.
É boa retribuição pelo suor ter as pétalas que, com as suas tonalidades e formas, massajam os olhos e amaciam a alma. Ainda maior é o agradecimento de ver e contribuir para a evolução, de ter estado em todas as etapas. A mais alta recompensa vem da criação de um ciclo de vida, o vegetal, dentro de outro, o humano.
E comentando o viver, e começando do nada, há quanto tempo não repara no nascer de um ser?

Equipa Imperfeita

É um pesar ver aqueles dois em último. Quem os viu individualmente apostou que, juntos, seriam o grupo perfeito. O que faltava a um, excedia no outro, em proporções tais que se acreditaria ter sido a mãe-natureza a fazê-los um para o outro. O resultado dos dois unidos foi, contudo, um descalabro. Ninguém ganhou senão o adversário. Dizem ter sido as diferenças, mais fortes que as parecenças, o que os fez desentenderem-se e, por consequência, perder e perderem-se. Tal assim não se passou: não foi a disparidade, mas a igualdade os destronou - a igualdade dos seus egoísmos. Esses individualistas ainda não se aperceberam de que são seres incompletos?!

Ciência Humana

No momento em que acabei de compreender totalmente aquela pessoa, ela cresceu. Novo trabalho de reconhecimento. Sustentar teorias antigas ou substitui-las por modelos modernos? Observação, problema, hipótese, experiência, resultados, conclusão. O método científico a atirar-se a mim como religião fundamentalista da qual não me autorizo libertar. Inatacável, inabalável, mas a fórmula perfeita não funciona. Há variáveis desconhecidas. Atribuem-se-lhe nomes e repete-se o processo. Só obtém sabedoria absoluta um ser estático perante o outro. Como todo o humano é dinâmico, o jogo pode durar indefinidamente ou, como sempre, até à desistência de um dos jogadores.

Cabeça de Ar

Quando se lhe aqueciam os pensamentos, a cabeça convertia-se em balão e o seu corpo, o cesto, acompanhava-o passivo pelo céu utópico. Contudo, houvesse um só momento de arrefecimento na euforia e olhasse para baixo, de imediato, congelavam-se-lhe as ideias. As rajadas glaciares que se inseriam na sua cabeça faziam-no descer abruptamente à escura, silenciosa e subterrânea depressão.
Queria viver à temperatura ambiente, caminhando apenas com o seu peso real. Mmmm…na verdade talvez preferisse pensar morno, naquele limbo em que os pés, parecendo no chão, não o estão. Observando com proximidade, nota-se que ele não caminha: movimenta-se levitando.

Auto-Paralítico

Aprendeu muito, muito cedo, por si. Não apreciava a alegria da aprendizagem conjunta; não tinha, portanto, colegas. Estes iriam desacelerar a apreensão espantosa de conhecimentos que ele obtinha individualmente. Em relação ao ensino era igualmente extremado: explicar a simplicidade a quaisquer discípulos travaria a passada veloz para a sabedoria universal que ele ansiava adquirir.
Continuando sozinho, o seu espírito progredia para uma crescente complexidade. Qualquer dos seus actos assentava num conjunto de pensamentos excessivamente emaranhado, comparável à manipulação de uma marioneta de mil fios.
Era-lhe impossível aceitar explicações simples, aceder à naturalidade ou espontaneidade – havia, ao arrasto de uma só acção, implicações infinitas.
Deixou de agir e tomar decisões por trazerem estas consequências demasiadas e pesadas. Assim pensava, assim paralisou.

O Reformado

Agora, sem trabalho obrigatório, idealizou ter-se para si todo o tempo. Logo se entediou. Quando revolveu o armário dos seus desejos adiados, chocou-se; estes haviam perecido à míngua de atenção e concretização no momento oportuno. Sem propósitos próprios, dedicou-se aos outros. A actividade que mais o entusiasma é conversa. É bom dialogante e esmerado ouvinte. Com estes atributos, decidiu ir para os lares, parques, bibliotecas e escolas relatar as suas aventuras. Entretendo e entretendo-se, narrava contos em voz viva, não enlatados em filmes, livros ou letras de músicas. As pessoas entusiasmavam-se e atavam episódios seus aos dele: criou discípulos que valorizavam a magia das histórias humanas.
"Cada um é tão único no que vive e no que viveu", maximizou.

O Refúgio

No refúgio eu conheço-me, todos me conhecem. Ali, há uma atitude ideal, por isso incorrecta e incompatível com o universo que se quer a funcionar uniformemente.
Não nos julgam, descrevem-nos. As minhas, as nossas características não são adjectivadas. O “bom” e o “mau” unem-se sem fricção – são definições tão estranhas para mim, para nós, como para a gota de água que ignora se viverá isolada, numa pétala, ou em conjunto, numa inundação.
As conversas, interiores ou bocais, seguem sem prepotência, sem sobreposições, sem outros interesses que não o da narrativa. É a aprendizagem através da constatação, exercício difícil como o do médico que tem de descortinar a doença por sintomas comuns a muitas.
E em qualquer parte, dentro ou fora de nós mesmos, buscaremos um refúgio. E encontrámo-lo naquele só sítio onde sabemos quem somos.

O Astronauta

Era o sonho de ser alpinista numa estrela e escalar as suas seis pontas. Querendo transportar o seu corpo para a sua imaginação, foi aprendendo física, engenharia e astronomia. Tão exacta era a ciência que estudara como alienada era a ideia que com ele nascera. Na sua cabeça já estava o desejo mais pessoal; acrescentou, no seu conhecimento, a sabedoria mais pública.
E após ter voado para o espaço, a sua utopia metamorfoseou-se em memória. E logo que alunou, a utopia dos restantes caiu na encantadora realidade do possível.
Ocorre que os pés que vão para o céu e que dão os passos na lua têm a cabeça assente na terra.

Prensa Musical

Despertei a ouvir música. Desconhecia a sua proveniência, mas agradeci ao intérprete. Não vinha aquela por meios eléctricos; era criada no momento como uma boa refeição quente.
Os barulhos banais que se sobrepuseram, dos pneus no alcatrão, das sirenes das fábricas, das vozes dos locutores, dos tilintares dos talheres, asfixiaram o deleitoso som matinal.
À noite, veio de novo o violino. Entoava uma harmonia amorosa, tão a despropósito para com a azáfama azeda, diurna.
Ironicamente, o meu dia de longas horas fora prensado, até ao seu desaparecimento, por aqueles dois curtos momentos: a música que me acordara e a que me adormecera.

A Incompetente

A emitir as maiores evidências, a indicar, sem nomear as culpas para colegas suas, especialmente se forem de sectores afastados do seu. Fala mais alto que as outras; quando encurralada diz algo a despropósito ou refere-se a uma situação, de tal forma óbvia, que todos com ela têm de concordar. Este assentimento permite-lhe obter novo fôlego e maior esperança em sair do beco que os seus dias de conversa lhe impuseram. “Ai, mas dantes não era assim. Eu sei como funcionava dantes.” E lentamente vai conseguindo que as pessoas se esqueçam dela, que não mais lhe perguntem nada – não se preocupa com a palavra incompetência.

Pão Nosso

Não se me tem passado que o mundo é ao contrário e que tenho de apanhar as migalhas para fazer o pão. A farinha é feita por todos e a sua concepção a ninguém pertence. Não temos um padeiro que governe as nossas vidas porque aparece o dono do trigo, o dono do moinho, o dono da carrinha de transporte de pão e o consumidor. Nós não queremos fazer da nossa vida pãezinhos quentes. Ou queremos? Talvez queiramos. É mais confortável toda a vida conduzir a carrinha, toda a vida empurrar o moinho, toda a vida cortar o trigo, toda a vida atentar às variações dos preços do combustível, da mão-de-obra e dos cereais. Não fazemos o nosso próprio pão sozinhos.

O Sábio sabe-o

Ele já não existe bem por ele. Agora, é uma entidade. Absorve as ideias dos outros, tem as suas. Depois disso, tem as histórias dos outros, tem as suas. Das tantas vidas que já lhe passaram pelos olhos, pelos ouvidos e pelas mãos foi retirando para a sua um pouco de cada uma daquelas. Retém e relembra recortes, expele e expõe-nos em contos. Os actos corriqueiros da vida entusiasmam-no, não o aborrecem. Um movimento monótono dá nova perspectiva: vê-se o mesmo que já se vira com a experiência que não se tinha. Defende que uma re-visão é um par de lentes adicional que torna mais nítida a missão do nosso ser no mundo. Ataca tanto os que romantizam a saudade como os que romantizam o sonho, concluindo: “Pior que a saudade do que se viveu é a saudade do que se sonhou.”

O Laxismo

- Aqui está o que pediu. Tem algumas falhas, contudo não pude remediá-las. Sabe, ninguém me deu formação nesta área e há alguns pontos que eu não compreendo inteiramente.
- A senhora não é responsável por este departamento?
- Sou sim.
- Então, não se preocupa que o trabalho seja mal feito?
- Pois, tenho tantas outras funções que esta fica…enfim…um pouco à margem.
- Mas isto é importante.
- Oh, meu filho, há tanta coisa importante neste mundo à qual não é dada a devida atenção. Não são estes papéis que vão fazer a diferença. A realidade não está nestas notas.
E os subordinados, ouvindo a motivação da superiora, satisfazem-se com o rame-rame da irresponsabilidade, crendo que não podem mudar o mundo porque ele é assim.

Alguns Esclarecimentos

E mal interpretaram-me. Ou mal me expliquei. O que terão pensado? Estes entendimentos incompletos dão discussões desnecessárias. Foi pelo que inventei uma brilhante máquina que permitia, com reciprocidade, o livre acesso às ideias dos outros. Um pensamento deslocava-se puro até ao outro sem as indesejadas interferências da voz, das palavras e das expressões de cara e corpo. Afinal, há por aí muitas gentes que não se sabem exprimir. Feliz por ajudá-las, patenteei o dispositivo. Nenhum vendi. A causa do desaire não foi o medo deles verem os seus segredos devassados. O erro foi ter assumido que os raciocínios eram lineares e claros e que, sem intermediários, se compreenderiam. Talvez a voz, as palavras e as expressões de cara e corpo mais esclareçam que confundam.

Aflição e Alívio

Foi um comentário fino. A ele se juntou uma reacção irónica. Veio outra réplica jocosa e o fio de conversa nasce. Com poucos segundos de vida, divide-se e não mais pára de se multiplicar. Há uns que entendem do tema e outros que se fazem de entendidos. A cabeleira natural que é a cavaqueira (será peruca se o tema for fútil) expande-se. Cabelos de ideias misturam-se procurando os seus pares – isto é uma arte de paciência pois pensamentos iguais podem-se pôr em penteados de palavras paradoxais. As opiniões divergentes eriçam-se, as convicções comuns unem-se em tranças. A sala, outrora careca e silenciosa, rejuvenesce. No coro cabeludo daquela divisão estabelece-se que o pequeno comentário inicial sofria de gigantismo.

Cabelos de Conversa

E o antes? “Antes é que era bom”. Já o dizia antes dos trinta e mantinha:”Não há nada como o antigamente”. E refastelou-se na vida, não importando o quanto ela se gastava sem uso nem se apercebendo que ia desbaratando o efeito de empurrão que as molas da juventude transmitiam.
E o agora? “Agora já é tarde.” Assentou-se. O presente era aquela paisagem de comboio rápida, superficial e incoerente. “Como dar crédito ao “hoje” se este está sempre a mudar?! O passado, pelo menos, é constante!”
E o amanhã? Como imaginam o futuro deste senhor? Simples, parece-me: o seu futuro é um grande espelho virado para trás.

Antes, Agora e Amanhã

Antiquadas estão as histórias daqueles ambiciosos e gananciosos que matam e roubam à descarada para ter mais tesouros e terras. O nosso burlão aperaltado, imoral mas legalizado, vai pela via intelectual: diz ao povo que sabe tudo - que perguntassem ciência ou alquimia, ele correctamente responderia. O conto do vigário assim se processava: no primeiro argumento particularizava, numa história infeliz de um único indivíduo, no seguinte, generalizava-a à altura de uma conspiração milenar e mundial. Nesta infinita amplitude de erro, entre um homem e a humanidade, lá estava a verdade e ele, o trapaceiro janota, nela acertara.

Irreacionários

E a injustiça era chocante: ali escarrapachada, ofuscava de tão clara ser. E contudo continuava a ser perpetrada como se se registasse uma boa acção. O rapagão em andamento distraído chocara e tombara a mulherzinha, que se encontrava, simplesmente, parada. As suas cordas vocais desatam uma agressividade animalesca e atacam a vítima ainda caída: “És cega, ó velha?!
Desaparece da minha vista, deixa passar quem manda no mundo”. E avança no passeio, afastando a desgraçada da sua frente com o pé.
À volta, os mirones mantiveram-se mudos, incrédulos e passivos. Assistiram e comentaram em surdina opiniões inválidas, por não serem estas consubstanciadas em acções. Não defendem os fracos nem atacam os fortes. Os culpados são os calados.

Tratado da Tristeza

A tristeza não é trágica. É um sentimento passivo, que não se agrupa à revolta, à acção, ao exibicionismo. É baça, é discreta, é moderada. Não há tristezas agonizantes, dramáticas, sinistras. Não será azul-bebé a cor do triste? Ou azul-mar? A tristeza é um mergulho. Sozinhos e sem sons no fundo, pensamos os nossos próprios conselhos.
A tristeza não tira a razão, enviesa-a. No dia de sol, a única nuvem aparece no caminho até casa.
Constatamos, todavia, a existência do sol. A melancolia não nos torna pesados, ficamos leves, leves o suficiente para voar; porém voamos como pombos-correio: sabendo, desde o momento em que partimos, para onde nos dirigimos. Apercebemo-nos da nossa falsa liberdade. A tristeza elucida.

A Filha é a Vida

Toda a vida a sonhar. Até ao momento da total apatia e indiferença. É o problema do casal jovem que envelhece a fazer cerimónia para concretizar os seus sonhos. Tem toda a sua vida pela frente, mas distrai-se com a vida dos outros. Em alternativa, foca-se apenas e tanto e só na sua vidinha que não a deixa crescer, emancipar-se, ser ela própria. Tentando controlá-la em todas as vertentes, mimando-a de fantasias, quimeras e amigos imaginários, vai sufocando-a lenta e invisivelmente. Vê a sua própria vida morrer antes e diante dele. É aí que se resigna. E há aí também uma dor silenciosa e escondida. É a dor da perda de uma filha, mas ele não o sabe. Não o sabe tão pouco que foi ele mesmo que a matou.

Apresentação

Não sabia onde colocar as mãos, as pernas, a voz e o cabelo. Sentia-me, e era-o?, observado a cada detalhe. Não me saía o olhar devido, o sorriso próprio, a palavra adequada. Até sabia do tema, melhor que ninguém, mas nenhum músculo, da face ou restante corpo, comprovava o meu à-vontade com o assunto. Nervoso, inseguro, atabalhoado, ansioso, fazia nós nas ideias, não nas suas pontas, mas a meio. Com facilidade tropeçava nesses laços de pensamentos inacabados e logo que me erguia, tristemente concluía que perdera o fio à meada. Saí da frente do espelho e voltei ao que era. A minha imagem ainda está longe do que eu sou e do que sei.

Envenando a Amizade

Bom dia, como tens passado? Bom dia, tudo bem? B’dia. [silêncio].
Eu vou cozinhar para todos. No restaurante eu pago o jantar. Cada um paga o seu. [Temos de combinar].
Ainda tenho tempo para dois dedos de conversa e de uísque. É melhor ir indo. Já estou atrasado. [Desmarco o encontro].
Eu vou com o meu irmão e ajudamos-te. Se puder vou lá dar uma mãozinha. Já pediste àquele nosso colega? [Eu faço preço de amigo].
Sou todo ouvidos. Diz, mas despacha-te, tenho afazeres. Espera um bocado. [Depois falamos].
Vou de propósito visitar-te. Faço um desvio para te cumprimentar. Se vieres ter comigo até conversamos. [É impossível vermo-nos].
Amizade. Companheirismo. Compaixão. [Indiferença].

O Uniformizador

Viajava por todos os pontos cardeais. Tudo o que aparecia de novo entrava no domínio do fascínio, do encantamento, do sobrenatural e do surreal. Manteve, por muito, o deslumbramento que qualquer primeira vez dá. Contudo, as constantes novidades esgotavam-no. A expectativa do que viria, a sofreguidão de experimentar o que vem, o receio de esquecer o que veio, tudo o colocava numa ansiedade eminente. Para se acalmar, para evitar o permanente estado de sobressalto, passou a agrupar elementos: um grão já não era singular, mas pertencia a uma pedra, a um penhasco, a uma montanha, a uma cordilheira; uma pessoa não era única, mas pertencia a uma família, a um grupo social, a um povo, à humanidade. Nesse dia, morreu como viajante.

Os Conhecimentos

Este conhece aquele para meter o filho acolá. O outro conhece o aqueloutro para deixar entrar a mulher sem pagar. O certinho é mal visto porque não ajuda o vizinho. Defender os próximos é imoral e por vezes ilegal? Em que trama e em que manha vivemos para ter de dizer não a um familiar ou a um amigo de quem, genuinamente, gostamos? Certo ou errado, quem decide é o “diz-se que”. Quem o diz?! Nas minhas costas tenho uma procissão daqueles que de mim dizem mal. Se me viro, porém, sou aclamado e aplaudido. Eu, Deus e Diabo, e eles, seguidores de ambos. E porquê? Porque pouco se assumem. Uma mesma pessoa, num mesmo degrau, autoriza a subida e a descida. Somos, sem dúvida, faladores de vão de escada.

Voos Planos

A vida apareceu-me como uma queda constante. Nascido lá no alto e daí atirado, só poderia cair, cair, cair. Em desespero comecei a bater as asas, apenas para parar numa altitude qualquer. Nela me mantenho, a uma dimensão, num voo linear e contínuo que pode ser eterno. Habituo-me somente a não cair. E é isso que quero? Ser somente um sobrevivente no ar? Num esforço adicional, agito as asas mais assiduamente. E subo um pouco. E avanço outro tanto. Sem me aperceber, atinjo outras perspectivas, se quiser contemplo, se quiser toco a paisagem. Constato então que voo, voo, voo. E chego assim ao maravilhoso ponto da vida em que, quando paro de bater as asas não caio como cairia no princípio: fico a planar.

Projecto Deficiente

Os pais, negligentes, desconsideraram os avisos, e o filho nasceu pejado de deformações. Foram-no tratando como um anormal – não deficitário, mas excepcional: “se eu sou brilhante, o que sai de mim também será”, reclamam com uma arrogância desmedida. Confrontados com a evidência crescente dos defeitos do seu fruto, os progenitores abandonam-no definitivamente. Não se pense que fogem humilhados - saem orgulhosos porque deixam um bebé que, como todos, mas por curto tempo, é novo, bonito e adorado. Sabem eles, esquecem os outros, que quando crescer irá ser discriminado, zombado ou apupado; porém, esse futuro está tão longe que já ninguém se recordará quem foram os seus autores. Felizmente, para os humanistas, estas histórias passam-se mais com obras do que com crianças.

O Eco do Oco

Com as comunicações falo para um milhar de gentes, escrevo para uma pequena população, filmo-me para uma nação. Fico viciado em mostrar-me e, num ápice, a minha imagem cresce muito mais que eu. Crio uma fenomenal carapaça social, tendo discurso para o mais endinheirado, o mais remendado, o mais académico ou o mais analfabeto. Se a minha pele engrossa exageradamente, que parte de mim teve uma evolução deficitária? O interior. Informo, comunico, correspondo-me com todos à excepção da minha alma, que fica desabitada. Um dia, desligado do mundo, falei para dentro: a ressonância, dada pelo vazio foi tanta, o que dizia a mim próprio saía tão distorcido que deixei de me compreender.

Antes de Adulto

Faço jogos de sedução sem saber as regras. Provocador em cerimónias e tímido em festas. O meu corpo reage de igual modo: borbulha inconveniente em noite importante e músculos proeminentes em dia chuvoso sem aulas de ginástica. O grito de espírito de irmandade sai-me em falsete e a voz suave no ouvido da rapariga de cabelos corridos vem roufenha. Sabem melhor os beijos mal dados do que os perfeitos, sonhados. Todos me aconselham e sabem o melhor para mim. Eles, os adultos já viveram, já passaram, já tiveram a minha idade. Acreditando que já tudo se sabe, alguém me pode explicar o que sou e o que quero ser, ter, ver, viver?! Eu, como adolescente, sei e conheço tudo à excepção de mim próprio. Tenho de me criar.

Entre o Nada

Começou, como todos, a partir da estaca zero. Andando, andando, chegou, como todos, à cepa torta. Daí via toda uma terra arável, mas vieram as vozes: “E se a vinha não pega? Tens pouco, porém tens mais que muitos. Mais vale um pássaro…”. Amedrontaram-no ou, dito em tom mais pungente, tiraram-lhe a ambição. Disseram que tudo estava nas raízes. A elas regressou para, pouco depois, acicatado pela curiosidade humana, voltar à cepa. Não era por muito, porém. Relembrando os ensinamentos tidos, assustava-se em ceder à novidade e retrocedia, novamente, até à estaca. E assim, este vaivém fez da sua vida uma longa indecisão, em que cada passo anulava o próximo.

Anomalias Normais

Age como todos. Aceitar o consenso, desviar das discussões, não ser o primeiro a reclamar nem o último a fugir. Fazer acusações a quem já é acusado e defender-se como inocente de críticas contra si, sem sobre estas nem aquelas reflectir. Imitar o colega de trabalho, o vizinho do quarto andar, o amigo de infância e o cunhado mais velho. Usar, mas não abusar ou abusar e não ser o único. Diariamente beber sem alcoolismo, mas beber, comer sem engordar muito, mas engordar, não gastar demais com o futebol, mas gastar. Esbanja a criatividade em desejos previsíveis e vendáveis. “Mas eu não sou assim”, a desculpa de sempre para si mesmo. É o preço da normalidade, a monotonia?

Testemunha Falsa

“Se me pedirem para mentir, recusarei com veemência sem pensar uma, duas ou mais vezes. Jamais vergarei os meus princípios perante uma injustiça!” Infelizmente, é mentira se o pedido é de um amigo. Contorci-me todo, matutei, idealizei, deslizei por todas as hipóteses. Dividi-me em mil, em mim, no compincha culpado, no inocente, no juiz de toga e no de batina. É forçosa a reflexão quando lhe é solicitada uma malvadez, suplicada uma imoralidade em prol da amizade.
A decisão é dolorosa quando o derrotado foi aliado e o vencedor é desconhecido.
Perdi o amigo porque lhe disse “Não”. Não, não. Perdera-me ele antes, aquando do seu pedido, quando me dividiu o carácter.

O Ex-Aluno

Como acontece tanto nas vidas adultas, estava confinado à escola da vida, à duradoura disciplina “experiência”, leccionada pelo incontornável, inacessível, repetitivo e eterno Professor Doutor Tempo. A aprendizagem arrastava-se, as aulas eram diárias e ininterruptas, maioritariamente monótonas e, se não se reprovava, também não lhe era possível obter notas brilhantes pois todos os que pertenciam à mesma classe tinham, estudavam, enfim, viviam horas iguais. Sentia que a velocidade da passadeira rolante do conhecimento era mais controlada pelo passar dos anos do que pela sua curiosidade. Seria aprovado, em velhinho, com uma passagem administrativa de sabedoria.

Pára-Arranca

Se o quotidiano acelera, a poesia trava. Com pressas e propósitos vejo numa maçã um mecânico quebranto da fome; não concebo a felicidade que o agricultor amador obteve quando a viu, ainda em rebento. Se o romantismo se adianta, as alegrias escondidas do meu dia-a-dia esboroam-se: terei de ver numa migalha um pão e numa gota um copo de leite. Não consigo ter pacatez e pressão num minuto e no seguinte. Em que pé deverei ficar? No pé ante pé; ir indo, passo a passo, atento simultaneamente ao percurso e às suas margens. E a que velocidade deverei caminhar? Com a suficiente para chegar aos sonhos e a moderada para não passar por eles sem vê-los.

Louva-a-Deus

Tinha braços e barbatanas, pernas e asas. Tinha olhos para todos os raios, pele para todas as temperaturas, papilas para todos os gostos e tímpanos para todos os sons. Saboreava, cheirava, tocava, via, ouvia, sentia tudo, tanto de noite como de dia, por cima e por baixo de água e de terra, nos pólos ou no equador.
Nenhum ser que lhe é inferior, e todos o são, acreditaria que não raras vezes este animal fabuloso se sente fraco, incapaz, pequeno, insignificante. E nesses momentos ajoelhados, essa estupenda espécie, cria o seu ser superior, o espelho daquilo que ela, a humanidade, é.

Na Expectativa

As mãos iniciam o seu período de sudação. O pé não pára de bater. Os tiques acumulam-se junto aos olhos, que se vêem pestanejados a cada dois segundos. A inestética pastilha elástica recebe ferozes dentadas. O termómetro interior desregula-se: o calor causa arrepios nas costas e o frio escalda as orelhas. A respiração é a de uma auscultação. Os pensamentos são vorazes e canibais, mordem-se e mutilam-se mutuamente. O corpo estraga-se tanto em tão parco tempo! A ansiedade sobe, sobe, sobe. A notícia está próxima; a salivar, a tremer, ouve-a, com a batida cardíaca suspensa: "Adiamento da decisão". Entra em esgotamento porque envelhece em sofrimento - a notícia, no futuro, sendo boa tanto não a será e sendo má, pior ficará.

Saúde de Vidro

Em feto, resguardado de qualquer maldade ou doença, protegiam-no a mãe com o próprio corpo, a avó com os conselhos e a tia com as rezas. Em criança, não causava desassossego a pele esmurrada e esfacelada das quedas, que eram aparadas por um Deus. Em jovem, de coração quente, o corpo ainda aceitava complacentemente os exageros. Em maduro, o tempo começou a soprar-lhe com mais força para dentro e começou a conhecer-se melhor. Em velhote, já sabia de que material era feito. O ar que os dias lhe davam não parava e, lenta, lentamente, foi fraquejando de forças. A sua saúde de vidro, outrora incandescente e inquebrantável, tornou-se fria e frágil.

Em Trânsito

Ele quis impor a sua mestria de condução nos outros países. Se, em nação própria, é exímio ao volante, porque não o será nas outras? Estradas são estradas, carros são carros, sinais são iguais e regras internacionais. Seguiu similar lógica para entrar nos caminhos culturais, assumindo que as leis eram igualmente universais. Estampou-se no primeiro contacto com os locais. Tentar conduzir uma cultura nas estradas de tradições de outra?! É de um louco que vai para um inevitável choque frontal. Em vez de ir sozinho e de frente, porque não ir ao lado da pessoa da terra que nos guia e explica a paisagem que descansadamente vamos vendo?

O Fim das Classes

- Arbustos: elevem-se ou morram. Coníferas: baixem-se ou caiam. Estipulo que todos os vegetais tenham a mesma estatura. Eu, o recriador, quero tudo na minha dimensão, a humana. De futuro, não me quero ajoelhar ou esticar para a vós chegar e, para além do mais, não aceito que os mais altos imperem e os rasteiros sofram.
- Com tanta igualdade, escolheremos e lutaremos todos pelo mesmo e, não havendo nutrientes suficientes, tornar-nos-emos canibais, algo impensável no mundo da clorofila. Dos animais apenas importaremos as suas maldades!
- Pouco me preocupam as vossas ideologias, é a minha a dominante por ser eu o mais forte.Fala este homem maníaco com as plantas. E se o estivesse fazendo com os povos, obrigando-os a ser semelhantes por conveniência de língua, câmbio ou doutrina política?!

O Brutamontes

- Por favor, não fumes em frente aos filhos.
- E porquê?! O meu pai sempre a meu lado fumou e eu, rijo, ainda aqui estou. - Toma conta da saúde das crianças, dizem que o tabaco é tão prejudicial.- Não lhes faz nenhum mal apanhar com um pouco de poluição - eles têm de se habituar à que há lá fora, bem pior, os fumos das fábricas, as emissões dos escapes...Queres pô-los numa redoma, como florzinhas-de-estufa, a espirrarem à primeira brisa e com mil alergias?- Sim! Não! Só quero protegê-los.
- A casa é minha, os filhos são meus, eu é que sei o que é melhor para eles e para mim.
Desenlace: o grosseirão, misturando na sua retórica ignorância, machismo e tradição emudece a fraca mãe.

Comentando

Antiquadas estão as histórias daqueles ambiciosos e gananciosos que matam e roubam à descarada para ter mais tesouros e terras. O nosso burlão aperaltado, imoral mas legalizado, vai pela via intelectual: diz ao povo que sabe tudo - que perguntassem ciência ou alquimia, ele correctamente responderia. O conto do vigário assim se processava: no primeiro argumento particularizava, numa história infeliz de um único indivíduo, no seguinte, generalizava-a à altura de uma conspiração milenar e mundial. Nesta infinita amplitude de erro, entre um homem e a humanidade, lá estava a verdade e ele, o trapaceiro janota, nela acertara.

Frio e Calculista

As pessoas que eu conheço vou-as amontoando no meu passado. É árduo distingui-las e já há muito desisti de as compreender por completo: categorizo-as e transformo-as em números ou unidades. Apesar de serem para mim cada vez mais e mais iguais, desenvolvi um discurso que convence a maioria dos indivíduos de que eles são insubstituíveis, únicos e imprescindíveis É notável (modéstias para quê?) a minha actuação, o meu fingimento, a minha simpatia e o meu impacto iniciais; até os cépticos que ouviram más histórias de mim, e que me cumprimentam com o pé da desconfiança atrás, começam, após a primeira conversa, a duvidar de quem lhes fez os ouvidos. Que faço de bem? Entrego, gratuitamente, amor-próprio através de elogios! Que recebo em troca? Bem, a uma pessoa distraída, desinteressada e dócil fica-lhe o dever da gratidão. Que faço de mal? Aproveito-me disso despudoradamente.

Auto Assalto

- Desconfio de todos: dos próximos, que me roubam discretamente não devolvendo o que eu lhes empresto; dos familiares, que me depauperam através de estranhas partilhas; dos conhecidos, que me fazem duvidosos preços de amigo; dos desconhecidos, que vêem a minha propriedade como pertença da comunidade, dos estrangeiros, que ignoram as raízes e a história das minhas posses.
Para estar a salvo dos invasores, construo um castelo. Emparedado comigo e com o que tenho, não distribuo nem partilho.
- Vais empobrecendo isolado, tirando tudo o que tens de ti mesmo, perdendo o teu tempo apenas contigo; e chegarás ao humilhante estado de colocares a chave na porta da frente para que, quando te assaltarem, possas ter, ainda que por breves instantes, a companhia de alguém.

Só com o Tempo

A criança faz asneiras, o púbere diz parvoeiras, o adolescente diz disparates, o jovem faz maluqueiras. Aos olhos dos mais idosos, os mais novos são intempestivos, irresponsáveis, inconscientes, imoderados, inconsequentes, insensatos.

Estes olhos críticos causam conflitos de gerações; este esquecimento dos seus passados cria clivagens e não complementações.

É certo que ninguém consegue explicar a experiência melhor que o mestre tempo, mas porquê deixá-lo dar toda a lição? Porque não contam, os anciões aos moços, as suas histórias? Falta de tempo dos mais velhos! Sem este tempo destes mais velhos, os mais novos ouvem e ouvem o aborrecidíssimo conto de uma frase só: “Vais aprender com o tempo”.


Monocultura

Mais e mais passo a pensar em temas repetidos, com perspectivas semelhantes, insistindo nas continuadas frases feitas, nos caminhos conhecidos, em locais habituais, com conversas inalteráveis. Ando à volta do mesmo, tenho ideias iguais - parece que o mundo se gastou: apesar de continuar para este a olhar, vai-me ele dando cada vez menos novidades. Precisarei de pousio, deixando-me na célebre lassidão d’”o burro, do velho e das línguas”? Ou procurarei, no espaço escondido do subsolo do conhecimento, novas culturas e novas sapiências? Deverei deixar crescer, profunda e secretamente, as raízes do saber, sem preocupações com folhas luxuriosas, flores efémeras ou frutas insípidas.

O Homem-Sombra

Outros tomarão os louros daquilo que eu construí, outros erguerão o meu trabalho como sendo o deles. Eu, receoso da minha obra, escondo-me…será ela meritória e satisfatória? Ou mal vinda e escandalosa? Amedronto-me com a crítica incógnita; tento controlar o meu nome nas poucas bocas de quem me conhece. Tenho medo de não ser bem interpretado e, à custa da minha insegurança, não me saberei defender; por isso mantenho-me calado, discreto e à sombra. Ninguém se lembrará de mim nem para me apoiar nem para me acusar. O pavor da fama – os aplausos caminham com o risco das admoestações e prescindo dos primeiros para não sonhar sequer com as segundas.

Acordar para a Vida

Acordar aos poucos. Abrir primeiro as narinas, em seguida abrir os ouvidos, depois abrir os olhos e, final e conscientemente, abrir o espírito. O mundo aparece-nos em peças que temos de emparelhar.
Infelizmente, também as há ao contrário, as pessoas que, aos poucos, adormecem para vida. Deixam de pensar - os hábitos aceleram, mas entediam as atitudes; deixam de ver – começam a atentar apenas àquilo que lhes é apontado para olhar; deixam de ouvir os seus sonhos, passando a acreditar somente nos dos outros; deixam de utilizar o nariz para cheirar e, por fim, para respirar. E não inspiram pela boca? Não, está esta demasiado ocupada a dizer (ao contrário do que fazem) que dormem pouco…

Desculpabilizando-me

Em tempo de crise vêm prósperos os videntes “os búzios, as cartas, as bolas de cristal desenham o vosso destino”, assentam-se as religiões “nós salvamo-vos dos cataclismos que agora nos assombram”, levantam-se as bruxarias “as mezinhas curam os maus-olhados que em si puseram”, engordam as casas de apostas “vai ganhar e dar a ganhar se muito jogar e muito gastar”. Tudo, no fundo, te tira as responsabilidades dos costados. Agora, é um qualquer desconhecido ser superior o culpado da tua infelicidade? É o teu esforço em vão? São as tuas qualidades inúteis? Porque continuas tu a acreditar em todos menos em ti mesmo?

Uma Certa Infância

Algumas pessoas, por vida ou por escrito, tentam manter-se puras e inocentes. Nada é mais difícil [claro que haverá, mas estas expressões absolutistas são pomposas] do que lutar contra a perda de ingenuidade, contra a experiência, contra a idade.
Como manter espontâneo o sorriso de criança sem estar a representar? Como manter original o pensamento de criança sem a ratoeira da recordação? Como manter os pequenos prazeres pequenos?
É bonita esta alusão à simplicidade, mas é merecedor atender àquela? A escusarmo-nos a crescer, decaindo no “Dantes é que era bom”?! A aceitar o mundo “Sim” ou “Não”, “Preto” ou “Branco”? Que monótono mundo monossilábico!
Invocar a nossa infância enriquece, reduzirmo-nos a ela empobrece.

Sem Stress

Toma suplementos energéticos e vitamínicos para não gastar a hora de almoço em refeições; ingere comprimidos de emagrecimento para não perder tempo com exercício físico; bebe todos os cafés para não ter de passar a noite a dormir; até utiliza voluntariamente a algália e a fralda para não ir à casa de banho. Pensa mais em como fazer as actividades do que na necessidade de fazê-las. Este forreta do tempo não dá minutos à família nem aos amigos nem a si próprio (seria embaraçoso reconhecer que já nem sabe o que gosta de fazer). O seu mote é, naturalmente, “A vida é muito curta”…mas que vida?!

Troca de Anos

- Queria dez anos, por favor.
- Com certeza. E para que efeito?
- Para ter uma vida calma. Esta última década gastei-a a correr de um lado para o outro, a remendar os atrasos dos outros e a desculpar-me dos meus.
- E tem aí os antigos, para retoma?
- Sim, estão aqui. Não valem nada. Duas mãos-cheias de anos iguais, nas mesmas ruas, com as mesmas pessoas, na mesma actividade e com os mesmos horários. Chega!
- Minha senhora, não sou bom comerciante, por isso lhe digo que não é de tempo que a senhora precisa, é de coragem: ou muda por dentro ou vai destruir estes anos novos da mesma forma que fez aos que lhe foram inicialmente concedidos.

O Ultra Urbano

Trânsito a rodos, tabaco às vintenas, pessoas em multidões, obras aos berros. Saio de um claustro para outro, consecutivamente: casa, carro, café, cubículo da ocupação profissional, cinema, centro comercial - tudo bem encerrado. Causam-me asco os espaços abertos. A minha visão da perfeição arquitectónica é a união dos topos de todos prédios que estão frente a frente para que todas as ruas fiquem fechadas por todos os lados. Sem imprevisibilidades climatéricas. Não me assumam integralmente artificial: gosto de um tipo de natureza, a praia, desde que esteja esta apinhada de iguais a mim.

Primeiro Amor

- Estou com uma paixão infinda! Vamo-nos por certo dar bem como par de namorados e de amigos, adivinhando o que o outro pensa e fazendo-lhe todas as vontades.
- E acreditas nesse universo de perfeição amorosa?
- Claro! Nunca leu ou viu “Feitos um para o outro”, “Cara-metade”, “Felizes para sempre”, em romances escritos ou filmados?
- Estou certo de que te maravilharás e encantarás, mas não menos te entristecerás e sofrerás. Por fim, abdicarás dessa outra alma. Avança com esse compromisso.
- Diz-me que é uma relação sem futuro, que trará desentendimentos e desilusões e aconselha-me a avançar com ela?
- Claro! Não te quero ver com essas ilusões tendo tu muita idade – podes ficar sem tempo para recuperar das decepções. Em termos de amor, deve-se errar o mais cedo possível.

Rebelde de Sofá

Inconformado, inconstante, idealista o nosso adolescente. Perturba-o a pobreza, insurge-se ante a injustiça, luta do lado da liberdade. “Por um mundo melhor”, “Igualdade entre os Homens”, expressões escritas de fresco nos desejos do jovem que sente suas as desgraças dos outros. Ajuda, apoia, dá, dedica. Porém, por dez necessitados que salva, um burlão lhe aparece. Cansa-se dos oportunistas e senta-se, desesperançado. A felicidade eterna de todos tarda, atrasa-se. Adormece. Acorda no Natal para um donativo. Satisfeito pela sua caridade, recosta-se no sofá. A idade resigna-o a esta generosidade isolada. Não conseguindo mudar o mundo, muda o mundo que vê, muda de canal televisivo.

O Sobre-Romântico

- Morri, é certo, mas dei a vida por ela.
- Deste a vida por ela?! Deste-lhe a tua morte! De que lhe vale a tua sepultura e a saudade de ti?
- Ficará ela com o fardo de nunca mais ninguém a amar tanto quanto eu.- E crês nas suas eternas solidão e culpa por por ti não se ter apaixonado?
- Ficará ela uma infeliz, ao reconhecer que não descobrirá ninguém que vá tão acima nas provas de amor.
- Não és um amante, és um cobarde. O amante dá à amada o seu tempo e tu fugiste com ele. E porque acreditas que ela de ti se recordará? Acredita antes em seres tu um esquecido porque a morte e o amor não sabem lidar num mesmo coração.

Cheiros de Corredor

E essa chegou com uma novíssima fragrância, acabada de sair do frasco, sem ter aguardado o arrefecimento do aroma artificial, a ansiosa;
E aquela apareceu com um perfume cansado, usado e alterado durante todo o dia, a aplicada;
E uma vestia-se com roupa recentemente engomada, a aprumada;
E outra veio com um véu de naftalina, a antiquada;
E esta traz cheirete de champô a escorrer-lhe pelas costas, a apressada;
E a tal fumegava tabaco pelo cabelo, a adoentada.
Por mim, porteiro, os cumprimentos passam fugazes, são os cheiros que ficam. Melhor sei distinguir as personalidades pelas narinas que pelos ouvidos.

Antes o Ontem

A saudade marca-me o passo: um para a frente, outro para trás. Consistente no movimento do tempo, caminho na passadeira rolante, em contra-mão, mantendo-me, assim, no mesmo lugar. Colo-me a um momento de felicidade, maior hoje do que na época em que foi edificado. Preso ao passado, dizem. É uma escolha lusitana, interior, antiquada, mas minha. Peco por relembrar? Deixem-me sentir a idade por instantes, por favor. Sou anónimo, ninguém recordará a minha história; permitam-me, por isso, fazê-lo, agora, neste presente pouco meu, para que obtenha o pequeno espaço de imortalidade da minha juventude, da qual já ninguém se recorda senão eu.

Alimentação Descuidada

“E quanto é ao quilo?”, questiono, apontando e apanhando simultaneamente a azeitona. Um passo ao lado e pergunto o preço do tremoço, pegando uma mão-cheia deles. Vou passeando pela loja, debicando umas uvas dos seus cachos e uns morangos das suas caixas. Farto da fruta, estou nos doces, que rapino para dentro do bucho. Ataco as bolachas, de abertura fácil, os pastéis, de montra aberta, e os chocolates, que se esfumam em duas dentadas discretas. Agora empanturrado, olho com vergonha para as minhas banhas e para as minhas acções. É tarde. Pesado, na barriga por tanto ter comido e na consciência por tanto ter roubado, vou para casa mal alimentado, de estômago e de espírito.

Trabalhador Intermitente

Mostra apenas um ar de empregado: comedidamente esforçado, sem causas de queixas nem de elogios. É um mero funcionário, que olha desinteressadamente para o que faz e, por inerência, despreza a dedicação dos outros. Assim, vai perdendo a vida, sem se aperceber. Acredita haver apenas duas formas de existência: a de amo e a de lacaio. De um lado e doutro das leis laborais, senta-se o capitalista desumano, que as considera castradoras e deita-se o criado preguiçoso, que as assume escassas. Não querendo ficar de mal, nem com o patrão nem com os colegas, vai fazendo, vai trabalhando...vai desvivendo.

Implosão Íntima

Sorri, cumprimenta, conduz, compra, come, dorme. Em dia incerto, olha-se como autómato. “Eu faço o que os outros fazem! Qualquer um me pode substituir! Sou um vivente não qualificado! Que mais valia tenho eu? Sou próximo de um ninguém!”. Mostrar-se fraco perante a família? Assumir-se frágil ante os amigos? Dar-se débil diante dos colegas? Não. Não. Não. Apresenta-se forte, frio, inabalável, inalterável. Por dentro, porém, desmorona-se incandescentemente. O amor-próprio treme sem controlo e ouve-se a autoconfiança a ceder. A vida, assente nestas duas traves mestras, está prestes a esfarelar-se.

Final Feliz?

Como queria ser eu aquele homem que todas as tardes vai à praia. Sistemática a sua passeata à beira-mar. Não me contenho e espicaço-o, na típica característica de um invejoso.
- É um homem de sorte!
- Sorte?
- Sim. Dia após dia a descontrair com o silêncio do pôr-do-sol e a melodia das ondas.
- Sorte?
- Sim, sorte. Calha a poucos a possibilidade de fazer o que gostam.
- Não ponha em mim os seus sonhos, que eu não porei em si a minha “Sorte”. Sabe porque venho à praia todos os dias? Aguardo que o mar me devolva o filho.
Como sabemos se uma história é feliz quando a única parte que dela conhecemos é o fim?

Profissão: Po...

- Ele dá-nos um universo idílico, apresenta-nos em palavras a perfeição, põe as banalidades no céu das raridades, transforma o que sabemos em matéria mágica e desconhecida.
- Sim, de acordo. Num sopro, esse homem mostra-nos a ingenuidade dos nossos sonhos, de maneira tão convincente, que nele e neles, acabamos por acreditar. Infelizmente, é impraticável o que nos conta! É desapegado do quotidiano, é utópico...é falso...é ficção...
- ...é belo! Deveria ele vir narrar a realidade horrorosa? Essa vivemo-la nós!
- Perdão por apanhar o paleio a meio, mas estão a falar de poetas ou de políticos?

A Ferrugem...

...da forma física vai-se com uma cirurgia estética?
...da paternidade passa com uma prenda?
...da generosidade dissipa-se com uma só esmola em moeda na mão do pobre?
...da sabedoria esvanece-se com apenas o noticiário televisivo?
...da paixão esbate-se com um só beijo?
...da gratidão raspa-se com apenas um aperto de mão?
...da verdade termina com uma só confissão?
...da perseverança acaba com apenas um madrugar?
...da responsabilidade finda com apenas uma carta pedindo desculpas?
...da amizade desaparece com o telefonema anual de Bom Natal?
O Sol eclipsa-se com uma peneira?

Desactivação d'Ideias

Paga o café com quantia certa, para não fazer contas aos trocos que lhe dariam; desloca-se aos mesmos locais, através dos mesmos percursos, para nunca se perder; lê a mesma notícia que já ouvira na televisão, para se assegurar de que a compreende, e comenta-a com opiniões que não são suas; impõe uma rotina no seu emprego, perturba o colega que não a tem e diz mal do superior que a tenta alterar; os seus sonhos são sempre iguais e imagina a inveja dos outros, se a sorte dos jogos sem saber lhe saísse; diz dantes é que era bom logo que sabe de uma tragédia dos dias de hoje. Esta pessoa não vive, funciona.

Desconto de Desconfiança

- Quatro pães e dois litros de leite, por favor.
- Com certeza. Queira preencher este contrato: na primeira alínea, indica que recebeu os produtos em boas condições e, na segunda, que tem possibilidade de pagá-los.
- Vê esta nota na minha mão? É suficiente para a despesa. Agora, disponibilize-me uma faca e um copo. Quero provar os bens e comprovar a validade dos ditos.
- Experimente! Asseguro-lhe que está tudo excelente! Nós apostamos na qualidade!
De dinheiro em punho, come e bebe as amostras da mercadoria.
- Em bom estado e dentro do prazo, quero comprar...mas vou ter que lhe pedir um desconto: este pão já é meio e o litro de leite já não o é.

Técnico do Nada

São, hoje em dia, mais importantes os conhecimentos técnicos do que os sociais? Claro que não! Sem saber lidar com as diferentes personalidades desse nobre povo burguês que por aí anda, nunca irei muito longe, muito à frente, muito acima... Preciso deste e daquele agora ou mais tarde... Dedico-me a conhecer mais pessoas do que mais normas ou mais leis ou mais regras ou mais fórmulas. E, ao perguntarem-me como determinado problema da minha profissão se resolve, respondo com vocabulário de especialista uma ideia generalista. Resolvi-lhe a situação? Claro que não! Ops...de tão social querer ser tornei-me um charlatão.


Concurso de Acidentes

- É pena, é pena, minha senhora: fez uma prova estupenda: não leu as instruções dos electrodomésticos, lavou-lhes a parte eléctrica e ligou-os à corrente. Contudo, teve azar pois apenas apareceram umas chamas perdidas e não houve explosões.
- Saio entristecida, não abatida. Não fui apurada, paciência, para a próxima, com mais ciência. O júri não reagiu sorridentemente ao meu acidente, que não foi espectacular o suficiente. Triste sim, porém vou continuar a tentar...e o importante é participar! Assim, ficarei até ao fim, tanto mais que aguardo ainda a prestação do meu marido, que também se inscreveu, não nos acidentes domésticos, como eu, mas nos rodoviários. Treina todos os fins de semana com os amigos, igualmente desejosos de ganharem este concurso “Acidente para sempre”.

O Grande Gastador

Não tenho a avareza no meu currículo de qualidades. Não poupo, não porque não queira, mas porque não é de mim. Aparece-me este e aquele, aqui e ali, a pedir-me isto e aquilo. Eu sou uma pessoa de bem e não posso dizer "não" a quem precisa. Dentro de mim há muitos Yes-men que não me deixam pronunciar um "NÃO". Sei, assim, que por aí andam tantos a governarem-se à custa do meu despesismo...mas se não são eles, não tenho ninguém...tenho de suportá-los e alguém tem de me suportar.Ao convencer os meus patronos a financiarem-me, declaro tanta moral nas minhas intenções, que já não a tenho para as acções. Até a moral gasto onde não devo: é este o meu Estado.

Beber Sozinho

Só o álcool se mantinha constante na mesa; as pessoas à sua volta enchiam-se de tédio e esvaziavam a cadeira. Ele, rodeado de seres humanos, sentia-se acompanhado. Quem a seu lado se sentasse, em seu amigo se convertia, e era a este que confessava, chorava e bramia as suas melancolias internas. E, se mais atento o colega de taberna estava, mais agonias o bêbedo jorrava e mais desespero transbordava; mas, de tão exagerada ser a sua tristeza, menos nele acreditavam, menos o escutavam, menos se inquietavam, menos o ajudavam. No fim, mesmo no fim, pediu a última rodada de amizade e já não lha serviram. Esparramou-se no soalho e não houve mão que se virasse para ele e o erguesse.

Contra-Indicação

- Para tomar o remédio mais popular tem de ter cefaleias, fadiga, febre ligeira; para uma dose mais forte já precisa de perdas de apetite, insónias ou tonturas; se preferir o medicamento da gama mais alta e exclusiva não pode evitar a visão turva, faltas de ar e mesmo desmaios.

- Não! Isso também não, credo!...mas olhe que a embalagem é bem bonita.e não acha que as cores da cápsula combinam tão bem comigo?...

-...por isso é também o mais caro. Relembro-a dos sintomas horríveis pelos quais terá de passar se escolher estes comprimidos, porém não deixa de ser verdade que estes lhe dão um estatuto de enferma de luxo.

- Penso que estou decidida: receite-me essa doença difícil para que eu possa tomar o medicamento que está tão em voga.


Dia de Trabalho?

Não prescinde do cafezinho e, onde o toma, sempre encontra alguém com igual disposição para falar - de tudo se põem a par. À vinda passa por um problema e, sem perceber nada, disparata uma solução para a peça encravada. Já no lugar, atende um familiar, liga a um amigo, SMS enviado, outro recebido. Até ao almoço, disfarça esforço e queixa-se de todos. Bom apetite! Na falta de sesta, estira-se na cadeira e faz considerandos bonacheirões sobre as promessas do futebol e os jogadores na política. Café e conversa da tarde. Nos momentos de silêncio há a anedota, a maledicência ou o cigarro que tem de ser fumado. Sai a horas para não se atrasar com o compromisso pessoal. Pede-se-lhe apoio e desculpa-se ele com este discurso: "Tenho muito que fazer, deixa-me trabalhar que eu não tenho é tempo para nada!"

Horóscopo

O seu destino está traçado pelos astros. Este ano você vai ser: feliz e infeliz, bondoso e maldoso, ajudado e atraiçoado, afortunado e azarado, saudável e doente, enfastiado e esfomeado, abendiçoado e amaldiçoado, interesseiro e desinteressado, milionário e mendigo, trabalhador e preguiçoso, solidário e egoísta, amado e odiado, atencioso e asqueroso, bem interpretado e mal entendido, enganador e enganado, sincero e mentiroso, inteligente e ignorante. Este ano você vai continuar a ser humano. O seu destino está traçado pelas constelações, mas não se esqueça de que estas foram feitas pelos homens.

Vaidoso Convicto

Falam com maldade da vaidade. Pois os dentes do feio não me ferram! A beleza é invisível e eu desenho-a, é a minha deusa e por ela me sacrifico; é nela que eu obtenho orgulho e amor-próprio. É a minha religião. Os despreocupados com a imagem são ateus, não os odeio, mas não são dos meus.
Eu sou pelos que gostam de se exibir. Se se é benfeitor é melhor sê-lo anónimo ou com estátua iluminada em igreja opulenta? Esconder a bondade?! O que é bonito é para se ver! Direis vós: "O que interessa são as boas acções." "O que interessa é o interior!"Como quiserdes: vestir-me-ei mais e mais até que a minha aparência se converta na minha alma.

Corrida para Velho

Entrei no circuito preparadíssimo: músculos em excelente forma, conhecimento detalhado das condições da pista, vestimenta adequada. Comecei a correr com segurança, com confiança, com ambição, com competição. Ia destacado quando avistei, mais à frente, um velhote vagaroso. Como me poderia ter ele ultrapassado? Apressei e alonguei os passos, encurtei as batidas do pulmão e do coração e aproximava-me do primeiro. Estranhamente, parecia-me ele menos lento quanto mais eu acelerava. Talvez o idoso não fosse tão vagaroso. Quando, por fim, o alcancei, para mim olhei: ficara com a mesma idade dele! Cheio de rugas olho para trás e relembro que corri toda a minha vida para ser o primeiro. Ganhei?

Racista Daltónico

Umas piadas na escola, uns encostos de ombro num passeio estreito, uns pontapés num jogo, umas navalhadas numa noite. Pessoas de outra pele não são pessoas, assim dizia, assim vivia...até ao dia...Piscou os olhos e viu o arco íris em sete cinzentos, esfregou os olhos e apareceu o céu esverdeado, esbugalhou os olhos e os homens ficaram azuis. As cores, que lhe decidiam as relações humanas, nelas já não podia confiar. As cores trocava-as sem ordem, perdia-as sem contar, recuperava-as sem prever. Desorientara-se: um branco bem poderia ser um vermelho e um amarelo ser um preto. Na dúvida, que era constante, em saber se o ser à sua frente era inferior ou da sua cor, feria-o e humilhava--o. Não discriminava ninguém nos seus maus tratos. Agora, para ele todos eram iguais.

Imagine

É possível imaginar uma situação que já existe? Não! Apenas a visualizará, a constatará, não a criará, não a inventará. É uma limitação da imaginação: não poder imaginar o igual. Tente imaginar-se vestido de azul e de azul estar vestido. Para poder imaginar que está vestido de azul, há que convencer-se de que o amarelo é a cor da sua roupa para, só depois, imaginar como ficaria de azul; terá de criar a certeza de que não está, agora, vestido de azul. Sai de si para a si voltar, transforma a imaginação em verdade, para reconhecer a realidade muda as certezas.

Pensamento de Solitária

Sim, sou. Sou egoísta. Apenas me interessa o que é meu, e porque não? Todasagem neste individualismo igual! As demais ou são mais fortes ou mais fracas- como as primeiras, não consigo ser, como as segundas, não quero. Estousozinha, mas estou bem, para mal acompanhada, mais vale ninguém. Em abono dasinceridade, as outras não me são importantes. Só eu sei de mim, só possopensar em mim, só posso contar comigo, só assim serei feliz - e a minhavida é só minha. Só. Só. Só. Só. Só. Quem está a falar? É uma sóalma? É uma só família? É uma só geração? É uma só nação? É umasó civilização? É uma, só.

Quem é ele?

A política é demasiado ideal para nela acreditarmos; à sua custa, muito se gritam as palavras já ocas "igualdade", "justiça" e "paz". Eu, homem de cabeça e corpo calejados, não creio nessas ideias, de tão altas pairarem, de tão velhas serem, de tão más bocas saírem. Eu não sou sempre justo, nem sempre honesto, nem sempre solidário...Vou lá acreditar que outros homens o sejam!! Conhecerei eu a alma humana? ou não acredito nela? ou na sua transformação? ou nem a tento alterar? Serei eu um realista, ou um descrente, ou um conformado ou um cobarde?

Patrão Pequeno

A vida não lhe foi fácil. Não nasceu pobre, mas assim ficou quando o pai morreu e a mãe enlouqueceu. Com a sua história, prometera-se acautelar o amanhã: cavou, carregou, pintou - se muito trabalhou, mais poupou e melhor investiu. Não teve ajuda do sono nem da diversão para montar o seu negócio. Não se prendeu a morais ou fés, boas ou más. Não aceitou a existência de fracos. Às pessoas distribuía-lhes salário e medo. À sociedade nada mais dava senão responsabilidades e obrigações. O mérito de construir o seu mundo anulou-o com a tacanhez de não querer conhecer outros universos.

Jogos Leves e Duros

Toda a minha vida fui um jogador. Comecei, como tantos, com o jogo do galo. Seguiram-se a batalha naval, as damas, as cartas e o bilhar. Evoluí para o computador e consolas. Adquiri o hábito dos toto-boletins, das lotarias e dos bingos. O passo era contínuo, rápido e irreversível. Sempre que a sorte me bafejava, eu alucinava e via mundos muito maiores do que os meus; imaginava beleza e riqueza por toda a parte e pessoa. Aventurei-me mais alto, nas slot machines e, logo depois, nos casinos e seus salões. Fiquei dependente dos azares e finalizei-me na roleta russa. Perdi. Porquê? Porquê?! Vós achais que foram os jogos leves que me viciaram nos duros? Aconteceu-vos isso? Aposto que não.


A Idade do Porquê

De onde vêm as memórias? Como funciona um telemóvel? Porque é o ouro um metal adorado? Quando é que um assassino fica perdoado? Felizmente os filhos desconhecem a ignorância dos pais e, inocentemente, insistem em tratá-los como sábios...Os progenitores, pela segunda vez na vida, se bem educados e bons educadores, entram pela curiosidade infantil, atirando e agarrando interrogações e soluções. Porém, se os crescidos estiverem com pressas e impaciências em explicar, o petiz deixa de perguntar e começa a pedir. Os "Quando, Como, Quem e Onde" restringem-se ao "Quanto": Quanto custa?

Dar e Receber

O político, de profissão ou personalidade, mostra bem o que dá e melhor esconde o que recebe. O homem, dentro de si, faz trocas com o tempo, em filho recebe, em pai dá.
O generoso, se ao dar, receber ingratidão, deixa de o ser.
O biltre é mais engenhoso no seu dá-recebe: entrega gratuitamente um presente, ninguém recusa o que é dado; conhecendo um vulgar homem sabe que, com a dita dádiva, despertou um sentimento de gratidão; pouco mais tarde fará uso dele, pedindo ao pobre que recebeu a prenda um qualquer favor mais valioso que aquela.
Dar e receber são sinónimos?

O Porco Preso

"Quem vai notar em mais um papel?" e assoa-se, deixando cair o lenço por terra. "Isto é biodegradável", diz, comendo uvas e maçãs, atirando grainhas para o ar e caroços para a parede. Após beber pelo copo de plástico, pontapeia-o "para longe, ninguém o vê" Perdida a sede, ganha urina, que despeja, discretamente, num canto. "Necessidades da natureza". Corta os cigarros em fumos, beatas e cinzas e espalha-os para cima e para baixo "São só plantas queimadas". Cospe, com convicção, para o chão, "É a maldita constipação". Cansado, adormece. Acorda em solo imundo, atmosfera pestilenta, ambiente repugnante. Pergunta-se quem terá conspurcado o seu espaço. Recorda-se que está preso numa pequena cela e, por isso, fora ele próprio a poluir-se. "O mundo é mais pequeno do que eu pensava", constata, enjoado e aos vómitos.

A Bateria

A senhora subaproveitava-se. Tinha capacidade para dez, fazia sete. O seu raciocínio, enviesado pelo comodismo, era o de ir poupando as forças; e assim filosofando e agindo foi, assumia ela, aumentando as suas reservas de energia. Porém, como ao atirador azarado, o tiro saiu-lhe pela culatra: ao invés de se fortalecer, mais dificuldades ia tendo para fazer o mesmo. Porquê este paradoxo de que quanto mais esforços amealhasse, mais cansada se sentia? Desenterre-se a justificação: foi viciando a sua bateria interna. Recarregava-se de comida sem estar com fome e de dormida sem estar com sono. Engordava e amolecia. Foi-se estragando porque se habituara a tanta recompensa para tão pouco empenho. Começou a perder as suas capacidades por não as ter utilizado até ao limite. Irrecuperável.

Todos Gémeos

Exactamente os mesmos rostos, as mesmas expressões, os mesmos corpos, as mesmas vozes, as mesmas vestimentas. Não havia aspecto nem de homem nem de mulher nem de velho nem de nova nem de patriota nem de estrangeiro. Era forçosa, pelo menos, uma pequena conversa para reconhecer uma pessoa; não se sabe quem é o outro só pelo olhar. História curiosa é a daquele que sofria de amor à primeira vista: apaixonava-se de imediato por todas as pessoas que se agrupavam no seu campo de visão! Combinar um encontro num local movimentado era façanha aventureira: ou se ouviam gritos "Sra. X, estou aqui!" ou perguntas "É o Sr. Y? Combinei aqui consigo!". Ninguém era cego, mas ninguém se reconhecia. Não é essa uma sociedade estranha? Na nossa, a dos diferentes, todos se vêem, mas ninguém se conhece.

Irreconhecimento Público

Não era um pródigo de sabedoria, mas tinha em si o conhecimento moral de não abusar do pobre e não vergar-se ante o poderoso. Com seu comportamento estabelecido nestes carris, jamais poderia ser um "alguém", como dizem. Ficar-se-ia, sabia-o, pelo orgulho que tinha no seu ofício. Trabalhava para o seu amor próprio, para o estômago e educação dos seus e para a vizinhança que, ao fim de semana, lhe pedia emprestadas as suas mãos calejadas. Envelheceu, adoeceu, estremeceu, esfriou. Não teve reconhecimento público, não foi medalhado. Dêem uma estátua ao trabalhador desconhecido! Não, não deram. A única pedra esculpida que tem é a tumular.

O Humanista Ingénuo

Os outros eram todos iguais e ele não era mais nem menos do que os demais. Não conseguia afirmar se gostava mais desta pessoa ou daquela. Não distinguia amigos de inimigos, familiares de desconhecidos, colegas de rivais, gentes de fora ou da terra. Tratava-os a todos do mesmo modo. Não fazia com que ninguém (nem o próprio) se sentisse especial. Convidado para entrar em partidos e associações, argumentava: "Porque são os meus interesses mais importantes do que os daqueles com quem me defronto?" Não pertencia a qualquer grupo e não magoava nem defendia quem se lhe interpusesse. Ninguém nele confiava ou desconfiava. Isolava-se, isolavam-no. Sozinho ainda está o homem que acredita: "Todos os homens são iguais".

Exposição Interior

Eis a minha pintura: dividida em dois, a tela é, do lado direito, um espesso traço negro, de luto e pessimismo; o esboço arredondado e azulado sob fundo amarelado, à esquerda, reflecte a realidade celeste, de um meio-dia de Verão, numa ordem inversa de cores. Demonstro, neste quadro, que a tristeza eterna é tão impossível quanto a permanência contínua do Sol no céu. Não são somente dois rectângulos, um azul e um preto, e um círculo amarelo!!! Não vês mais adiante? Não compreendes aqui a alma humana, a sua condição, as idiossincrasias a que fomos conduzidos desde as nossas nascenças? É o Homem aqui representado e as suas interdependências, para com as naturezas universal e interior. Não o sentes?! És um insensível!

Concurso de Dança

Transponho as leis da valsa e expulso a minha companhia, desajustada dos meus pés ritmados e esvoaçantes. Escolho outra e outra e outra mais. Ninguém se estabelece como meu par - não há quem acompanhe a gracilidade e vigor dos meus passos e viravoltas. Compenetro-me de que sou o melhor dançarino e, sem competição nem companheirismo ao meu nível, dou ao salão um baile a solo. "Inovador! Intrigante! Inconcebível! Nunca antes presenciado!". Os juízes (que, se liberais me laureiam e quando conservadores me contestam) impregnam-se de dúvidas: serei eu um demente, um elegante, um ousado, um extravagante, um génio, um insignificante ou um ridículo e talentoso solitário?

Seres Sonâmbulos

Despertar incompleto, corpo trôpego, pensamentos remelosos, acções aturdidas. Raciocínios pouco esclarecidos, tão independentes como os cabelos: tomando rumos próprios, nem os segundos seguem um penteado, nem os primeiros uma personalidade coerente. Muitos dos nossos pares, homens e mulheres, desorientados com a apatia dos seus dias, cá vivem num sono eterno que começou ainda em vida. Locomoção empobrecida de propósitos: andam nas nuvens, rastejam no desespero ou gatinham porque, por serem desequilibrados, não podem caminhar. Crêem que uma alma adormecida pode ser bela? Só nos sonhos e contos de fadas.

Mudança de Visual

Dei uma cor às unhas dos pés, outra à das mãos e tirei a do cabelo. Entusiasmei-me com as mudanças e fui em frente: escondi a pele sob tatuagens e preenchi orifícios com piercings. Excitante! Todos os dias uma novidade! Alterei as minhas hormonas, a minha voz e o meu sexo. Obtive músculos desmesurados, modifiquei o modo de andar e passei a agir com menor feminilidade. As minhas mudanças detectei-as no comportamento dos outros. não me tratavam como dantes, como eu sempre fora. viam-me de forma diferente...ou era eu que os via de forma diferente? ...ou era eu que já não me via igual?...era eu ainda eu?

O Velho Viajante

Outra e outra e outra vez. Passo pelos mesmos locais. Apenas e somente passar. Passar e escapulir. Ainda não estou inteirado da minha presença aqui, novamente. O meu corpo chegou primeiro que eu. Altero-me mais rapidamente do que os locais aos quais regresso. Não se apresenta o meu retorno nem através da nostalgia nem através da mudança - nem tudo igual nem tudo irreconhecível. É-me indiferente? É um deja vu consciente, cientifico, palpável, aborrecido, desinteressante.
Já me vou transportando ha muitos anos para os locais terem efeito sobre mim? Para que então mover-me? Como consigo ainda viajar com tanta velhice nos olhos, paralítico de sensações?

Desviajar

- E por onde vais passear?
- Não sairei daqui!!!
- Tantos lugares a visitar, tantas pessoas a conhecer e tu...parado?
- Eu justifico. O meu mundo tem quatro lados: norte, sul, este e oeste. Para cima, não me aventuro – o frio de pessoas e de climas é pouco hospitaleiro; para baixo, nunca me deslocarei por tanto me incomodar a pobreza como o calor. A este, estranhos de comidas e rezas, assustam-me. para o oeste não vou porque tudo a mim vem ter. fico mal onde estou mas receio pôr-me pior.
- E onde estás tu?
- Em frente à televisão.
- Com écran de ideias planas?

Multa Moral

- Então, homem?! Deixa-se enganar, dessa forma ingénua?
- Pois...a gente confia nas pessoas...
- Vai ter de ser autuado. Não há contemplações para anjinhos, distraídos, inocentes, bondosos e crentes.
- Excelentíssimo cobrador, por favor, isso é descabido!
- Não vamos culpar quem teve o trabalho em trapaceá-lo, ou vamos? O senhor teve algum esforço em ser ludibriado? A remuneração para aquele que trabalha! Paga ou não?
- Não tenho dinheiro, estou desempregado. Ninguém me aceita...diga-me: quem é o honesto que, hoje em dia, consegue manter um emprego?
- Não liquida a coima, verdade? Desse modo, está preso.
- Preso?!
- Irá para a prisão dos bons costumes, onde encontrará almas mais puras do que a sua.
- Precisamente! Só aprenderei a fazer boas acções. Sairei santo...
- ...e não é esse o propósito social das prisões?

Cidade-Ano

É uma excêntrica cidade: em cada caminho só se vive um dia. Entrei através da Rua Primeiro de Janeiro onde gritos e champanhes caíam das janelas para recepcionar os visitantes. Atravessando para a Calçada do Carnaval, nela sou bem-vindo com serpentinas atiradas por mascarados. Cansado da folia, acalmo-me na Praceta da Páscoa, animada pela procissão primaveril. Reinicio os passos e desço pela Alameda da Féria, belíssima, mas curtíssima. Na sua embocadura depara-se-me a Avenida das Aulas, interminável, cinzentona e cheia de becos adjacentes muito mais coloridos e agitados. Viro para um deles quando me surge o Largo Natalício: felizes as pessoas com os seus presentes, promessas e palavras de perdão. E, caminhada após caminhada, orientado pelo calendário, vou conhecendo os recantos desta cidade que parece nunca mudar.

Combate Noctívago

É um combate diário. O sono, de calções pretos e eu vestido de branco. Sem tréguas, levo os primeiros sopapos. Nos primeiros assaltos, contudo, esquivo-me com rapidez. Depois, já com princípios de cansaço, injecto algum doping, em doses de café, que sustém os pensamentos ágeis e as pernas energéticas. A força vai escasseando: um murro esplendoroso no meu olho esquerdo fecha-mo definitivamente. Outro golpe, no lado direito. O sangue do sobrolho cai para as pálpebras e fá-las tão pesadas que as de cima se unem às debaixo. De vistas cerradas, ouço o meu adversário a circundar-me e a amolgar-me todo o corpo. Deixo de pensar, deixo de falar. Atordoado, absolutamente atordoado, quero apenas fim, o fim. Knock Out. Uma pancada mais e estatelo-me. Inconsciente, quedo-me deitado no ringue até à manhã seguinte. Quando ela chega, acordo, estremunhado, ainda a levar murraças.

Aquecimento Global

Fervo em pouca condução e, num semáforo, enervei-me desmesuradamente com o tipo que não avançou quando o verde cintilou. Logo depois, já a acelerar em amarelo, aparece-me um peão a passar em vermelho. Subiram-me os azeites. Não contendo a cólera, despejei a minha alta temperatura gesticulando, buzinando, berrando e blasfemando àqueles dois seres que andam adormecidos nas estradas. Parqueei o carro e fui aos meus afazeres. Na loja, sou maltratado por uma empregada esbaforida. "Eu tenho culpa da sua má disposição?", reclamo. Responde-me "Não, não! É que ainda há pouco, ia eu na rua e um paspalho deseducado, insultou-me pavorosamente. No café, sou mal atendido e pronuncio-me: "Eu fiz-lhe algo de mal?". Corado, aquiesce o funcionário: "Ó senhor, perdoe-me mas agora mesmo me acalorei demais com um impaciente e deselegante condutor e ainda não arrefeci."

A Histórias

História I: Herói de país, desfez tácticas e corpos de inimigos, combateu pelo povo, protegendo-o e levando-o à liberdade, criou uma identidade nacional;
História II: Quebrou alianças, esfaqueou amigos, apunhalou familiares, apelou à crueldade, traiu e assassinou quem se lhe opôs.Homem de inquebrantável mérito militar, de enorme honradez, coerente com os seus princípios, defensor dos oprimidos, apoiante da justiça ou indivíduo megalómano, brutal, egocêntrico, impiedoso e cheio de intenções imperialistas e tiranas?
História - palavra a ser utilizada apenas no plural.

Os Turistas da Vida

Enquanto os temos entre nós tratemo-los afectuosamente. As diferenças e as divergências, se toleradas, só dão colorido e vivacidade e sabedoria às relações humanas. Com curiosidade de neto ante explicações dedicadas de avô, retiramos ensinamentos de Homens de outros tempos e de outras paragens e de outras línguas. O adeus, logo ali, tão inesperado, leva-os em saudades mútuas - num prato, o pesado vazio da esperança de tê-los novamente em nossos olhos; no outro, a gorda gratificação de os mantermos em nossas memórias. Hoje por cá ficamos, anfitriões da vida, honrando e chorando quem partiu. Amanhã, turistas seremos.

As Algemas da Ajuda

Durante anos, Ç. andou sem descruzar os dedos. As unhas trepadeiras enrolaram-se até aos pulsos e surgiram-lhe umas amareladas algemas de ceratina. A posição de reza involuntária, que as mãos exibiam, trouxe-lhe prisão de movimentos seus e crença nos outros e na compaixão que teriam ante a sua condição.Houve uns bondosos espertinhos que, no lugar de lhe darem comida à boca, ofereciam uns corta-unhas. Ç., de pronto, os recusava...ora...ora...intendiam os ditos misericordiosos amputar uma parte de si? Arrancar algo que tinha crescido consigo e que fazia parte da sua própria natureza e da sua própria história??? Eu, ao longe, roo até ao sabugo, ensaiando responder à pergunta para vinte: como se ajuda alguém que não quer ser ajudado?

Tortura Informativa

Comecei a chorar verde. Lágrimas de cor viva, fluorescentes, assustavam e atraiam as povoações de cá e de lá e de longe. Não sendo nem santo nem morto, a minha reacção lacrimal não foi tida como milagre. E, vendo-se arredada a religião, veio a televisão. Entrevistaram-me, perguntando há quando tempo derramava verde, e discretamente beliscavam-me, pisavam-me e suscitavam-me dor para que chorasse, ali em directo. Perversamente, o efeito foi o inverso: focando nos meus olhos uns holofotes potentes, secaram as lágrimas que tanto desejavam espremer, e somente obtiveram rastos secos de caracol nas minhas olheiras e nariz. Daqueles jornalistas, que nem perguntaram a razão da minha tristeza inicial, fiquei com pena: apesar das luzes fortes contra as minhas pupilas, foram eles quem ficaram cegos.

Lógica Venenosa

Nasci serpente. Sendo no chão vulnerável aos comilões de cobras, subia para a folhagem florestal, enrodilhando-me no silêncio e na cor dos ramos, à salva dos mangustos e dos serpentários. Contudo, não me livrei dos madeireiros: se, por bem, não me viram e não me mataram, por mal, confundiram-me e levaram-me com os troncos de árvore decepados das raízes. Na celulose, desfiguraram-me em pasta de papel; segui para uma tipografia onde me imprimiram umas ideias. Saio agora aos Vossos olhos num texto sem escamas nem língua viperina. Se desconhecessem a minha má sorte, que agora vos narro, acreditariam que acabaram de ler um réptil?

Opressão Verbal

De todos os pontos cardeais apareciam provérbios. Empurravam-me e esmagavam-me com a força sábia que todo o povo tem. Sem poder combatê-los, nem com ciência nem com reflexão, ia-me fechando dentro de mim. Os meus dedos recolheram às mãos e estas aos braços; os braços comprimiram-se nos ombros que retraíram ao tórax, para onde o cérebro havia entretanto baixado. O tronco compacto e pesado caiu até aos pés, tendo as pernas desabado logo após. Condensei-me num amontoado de escombros ósseos, cutâneos e musculares. Apertado por todo o lado, tudo misturado: coração na boca, barriga nos olhos, tripas no coração.

Atrasos

Atrasei-me: para o almoço, que esfriou; nos prazos e perdi o emprego; a ser mãe e fiquei sem filhos; na resposta e perdi uma amiga; a pagar e tornei-me incumpridora; na decisão e perdi as escolhas.
Foram assim os meus dias: fiz uma bola de atrasos e, quando quis ser pontual, ela esmagou-me. Tendo chegado a minha hora, eu não estava preparada. Passei a acreditar na vida após a morte para recuperar o que não havia feito. Na nova encarnação, a sucessão de atrasos manteve-se e eu permanecia sem refeição quente, sem obra, sem família, sem amizade, sem bom nome e indecisa. Ia passando por vários corpos e várias épocas, mas as minhas vidas quedavam-se sem história. Por mais imortalidade que me dêem, os atrasos matam-me.

Debate de Interesses

- Feche-se o Sol. É um esbanjamento de luz e calor – diz o empresário da noite.
- Inadmissível! O Sol é um sector importante na nossa economia. Quanto despedimento haverá se se deixar de produzir persianas, óculos e bronzeadores? - insurge-se o fabricante de leques.
- Reconheçamos que o Sol é mal gerido. Separando-o em duas empresas e colocando-as uma em cada lado da Terra, todo o mundo ficaria sempre iluminado – reflecte o vendedor de pílulas para dormir.
- Senhores: cheguemos a um bom senso – assenta o moderador - nem a noite nem o dia podem desaparecer!
- Têm todos razão: se dividirmos o Sol e vendermos metade, teremos menos gastos de luz e calor e manteremos o dia e a noite - solucionou o comissionista, que acrescentou – eu conheço uma galáxia interessada.

Puzzle dos Povos

Entretinha, educativamente, os meus filhos a encaixar os povos do puzzle mundial. Depois de unir um nacionalista arreigado a outro anotei que se tinham separado. Liguei-os e observei-os. Afastavam-se! E não silenciosamente! Atacavam-se e avisavam-me: “Que eu não fique junto a esse estrangeiro!” “Antes pobre e isolado do que seu aliado”. Tinha ali dois pequenos pedaços de história ilustrada e deformada a quererem ser independentes, abstractos e inúteis! Apregoei, a esses patriotas exacerbados, o eterno sermão da união: após o puzzle montado, não vêem vós que as fronteiras passarão despercebidas e maiores seremos nós?!

Senhora sem Cor

Típica senhora que não se sabe soltar do Inverno. Sorumbática e a trovejar por dentro, anoitece mais cedo os olhares sobre as paisagens belas da vida: prenuncia ela, vendo um Sol rechonchudo, que vem aí trovoada e não esplanada. Sai do trabalho, passa por uma lojita ou outra. Carrega com sacos de plástico barulhentos, entra numa pastelaria só por um bolo que pede ao balcão e come-o, à socapa, enquanto caminha. "Não sei como engordo tanto! Eu nem como muito", é a frase que esquece quando se lambuza de açúcar, no meio da rua. Veste com sapatos que não são feios, calças que não lhe ficam mal e camisa que até surge jovial. O seu conjunto, contudo, é a figura de um arlequim demasiado açoitado a quem lhe caíram todas as cores da vida. Incluindo o preto e o branco. É invisível porque ninguém a quer ver.

Menina Mimada

- Quero um mundo só de pessoas felizes.
- Ah, menina mimada. (Estas crianças de hoje em dia, que têm tudo, começam a pensar nos outros; se eu, no meu tempo, partilhasse, morreria esfomeada). Agora, a sério, pede uma coisa apenas para ti.
- Já disse: quero um mundo só de pessoas felizes.
- Por amor do nosso Deus! Isso não há nem no estrangeiro. Dou-te o que quiseres...mas ter de comprar também uma boneca à filha da vizinha?!
- Eu quero um mundo só de pessoas felizes!
- Vamos parar com as graças, garota! Ou escolhes um brinquedo ou não levas nada.
- Eu quero um mundo feliz!!!
- Pronto, pronto. A mãe vai afastar os miseráveis da nossa vista e já ficas com o mundo que queres, pode ser?

A Vidente

Numa casa espírito-astrológica, ansioso por conhecer a sua vida, bisbilhota:
- Como foi o meu passado?
- Este é um estabelecimento tradicional: só tratamos do futuro.
- Isso é inadmissível! Em Portugal, onde impera o fado e a saudade, a senhora atreve-se a ignorar o passado? Acha que eu, português de Barcelos, me iria preocupar com o futuro??!!
- Perdão, perdão. Diga, então.
- Quero saber porque as coisas não me correm bem.
- De dia gasta mais horas e notas do que as que tem, ficando atrasado e endividado. À noite desperdiça moedas e minutos em sucessivos vícios. É por estes comportamentos que o senhor não tem tempo nem dinheiro para nada. Não são esses os seus problemas?
- É verdade, verdade. Como sabe?
- Ora, eu sou vidente!! ...e o senhor é português...

Barba de Sábio

Pinta-se, em seguida, que, se as cores mandassem, o fundo do mar teria ninhos.As aves truz! truz! embateram na pesada nuvem cor de chumbo. Todo o bando, de imediato, desmaiou e começou a cair céu abaixo até atingir o lábio inferior do horizonte, o mar. Os pássaros, ao tocarem na água, acordaram, porém, ainda despassarados do choque celestial, não se aperceberam de que já não voavam mas nadavam. Confusos, mergulharam para trespassar a mancha azul que os envolvia, supondo que estavam no meio de uma nuvem e não no meio de um mar. Perfuraram todo o líquido salgado até tocarem num fundo acastanhado. Novamente crentes na cor, os bichos voadores assumiram ser aquele castanho o de uma árvore e nela começaram a nidificar.

Barba de Sábio

Pinta-se, em seguida, que, se as cores mandassem, o fundo do mar teria ninhos.As aves truz! truz! embateram na pesada nuvem cor de chumbo. Todo o bando, de imediato, desmaiou e começou a cair céu abaixo até atingir o lábio inferior do horizonte, o mar. Os pássaros, ao tocarem na água, acordaram, porém, ainda despassarados do choque celestial, não se aperceberam de que já não voavam mas nadavam. Confusos, mergulharam para trespassar a mancha azul que os envolvia, supondo que estavam no meio de uma nuvem e não no meio de um mar. Perfuraram todo o líquido salgado até tocarem num fundo acastanhado. Novamente crentes na cor, os bichos voadores assumiram ser aquele castanho o de uma árvore e nela começaram a nidificar.

As cores mandam

Pinta-se, em seguida, que, se as cores mandassem, o fundo do mar teria ninhos.As aves truz! truz! embateram na pesada nuvem cor de chumbo. Todo o bando, de imediato, desmaiou e começou a cair céu abaixo até atingir o lábio inferior do horizonte, o mar. Os pássaros, ao tocarem na água, acordaram, porém, ainda despassarados do choque celestial, não se aperceberam de que já não voavam mas nadavam. Confusos, mergulharam para trespassar a mancha azul que os envolvia, supondo que estavam no meio de uma nuvem e não no meio de um mar. Perfuraram todo o líquido salgado até tocarem num fundo acastanhado. Novamente crentes na cor, os bichos voadores assumiram ser aquele castanho o de uma árvore e nela começaram a nidificar.

A Campaínha

É tarde para tocarem. Um vizinho aflito? Um pedinte fora de horas? Um assaltante armado? Um jovem deseducado? O colega de rua tinha perdido as chaves e, sem a minha ajuda, dormirá ao relento. O mendigo, drogadito, que acordou da ressaca e esfomeado, pede-me mais comidas que moedas. O ladrão só quer ouro e o puto divertimento. Estão todos na entrada da casa aguardando a minha reacção. Abro a porta com a ingenuidade de um bondoso e sou roubado ou gozado? Ou mantenho-a cerrada e não presto solidariedade, que me faz tão humano? Da minha decisão sairá sempre uma injustiça. Imóvel ou em acção farei uma vítima: ou eu ou o vizinho ou o vadio. Concluo, triste e egoisticamente, que contribuo para a eterna imperfeição do mundo...e deixo tocar a campainha...e os dois maus venceram os três bons...

Inanimado de Ideias

- A vida é dura, o mundo é cão, todos enganam todos: não vou ser eu a excepção. E ladrão que rouba ladrão ou é roubado ou tem perdão. Se eu me acanho vem outro e tira-me o lugar, se eu sou cortês, e abro a porta para um passar, atravessam-se três. Os fortes ficam, os fracos fogem. Só estou a sobreviver, nada mais posso fazer. Vivemos com a lei da selva.
- Permite-me a intromissão mas, mais do que lei da selva, isso é pensamento de selvagem. Não é comportamento animal resignar-se ao ambiente onde vive? O Homem cria o seu meio! Ele faz do vento calor e do sol frescura. Porque não fazes do ódio amor e da inveja orgulho?

O Fraco

Sou um fraco, sou, resignadamente, um fraco. Não quero perturbar quem quer puxar a humanidade para a frente. Deixai-os passar. Quero a minha vidinha apenas; os meus confortos minúsculos, as minhas dádivas ínfimas e os meus desprezíveis esforços para com as vidas dos outros, próximos ou distantes. Sou um ninguém sem nome próprio. quero descanso ao final do dia, ao final da semana, ao final do ano. A execução dos sonhos fica para as mesmas datas. E eu fico comigo e com o bando de fracos que se mascaram de amigos. Criticar torna-se a minha consolação; é com crescente veemência que aponto e grito “Eu faria muito melhor!”

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