quarta-feira

O Emigrante

Exercício singular esse de se desprover de tudo o que a sua vida tem: cidade, país família, amigos, emprego, língua e cultura. A possibilidade de criação de uma nova identidade abre-se tanto mais quanto mais encerra o seu passado. Quem é ele genuinamente? Um desportista colectivo ou individual? De motivações externas ou internas? Numa comunidade, tenta-se reencontrar através dos outros. Na solidão, revolve-se por dentro em busca de forças latentes. Vem o dinheiro, que vai com a poupança ou com o dia-a-dia. Fica a descoberta de si mesmo, do que vale, do que é. Não pode acusar o sistema nem com ele desculpar-se. Ele é o sustento do seu sistema.

quinta-feira

Ecologia dos Pobres

A senhora não utiliza o frigorífico por ter, perto de si, o mercado dos legumes. Veio do talho e fez rojões, que mantém em banha, para quinze dias. Apesar da oferta de pedaços de bezerro que as netas mataram e lhe proporcionaram, rejeitou a carne para não ligar a arca – mais custava a electricidade que o alimento. O peixe, seco e em sal, dura guerras. Para prepará-lo, conta os jantares em postas, demolha-as e desfia-as durante dias. Reutiliza roupas suas para as filhas e estas usam-nas entre irmãs e primas. Conserta o que se pode e, ao estragado, dá outra utilização – o copo partido passa a vaso.

O Rapto

Era figurona pública. Persegui-o, atordoei-o, amarrei-o, levei-o. Deixei o meu número de telefone como única pista. Aguardava a comunicação que me perguntasse pelo valor do resgate. Meio dia, um, uma semana. Ninguém aparecia a reclamá-lo. Não significava contudo, que eu não recebesse chamadas. Eram inúmeros os curiosos que queriam saber se a vítima estava viva e se era torturada com regularidade. Eu, para além de o alimentar, tinha de aturar esses coscuvilheiros inoportunos. Sem sucesso financeiro, decidi soltar o homem. Este, contudo, não ficou impressionado; afirmou antes, laconicamente: “o meu cativeiro não diferiu muito da minha liberdade – todos querem saber tudo sobre a minha pessoa de fora e nada acerca da de dentro.”

Casas Comigo?

“Casas Comigo?” é o abracadabra do coração; um cofre aberto donde o orgulho pode ser pilhado ou o tesouro, o amor, dentro dele multiplicado. O egoísta gagueja. O jovem desdenha. A magoada satiriza. O sedutor receia. A solitária anseia. O apaixonado promete. O calmo cumpre. Quem pergunta fá-lo na maior inconsciência, no maior desespero, na maior responsabilidade, no maior amor, na maior cumplicidade. Muitos têm medo da longa duração do contrato - as datas estão marcadas: “sim”, no dia da boda, “fim”, no dia da morte, por vezes depois. O casamento é dois compromissos: um com uma pessoa e outro com o tempo - não querer ser velho em novo nem novo em velho.

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