quinta-feira

Rave Vegetal

Está uma ventania danada. As plantas abanam as cabeças de forma repetitiva e hipnotizada. As ervas são as mais activas, por serem leves, mas as árvores mais jovens também aderem a este movimento. As idosas, pesadonas, mal sentem o ritmo. Os vegetais vão arrefecendo e, sem força, oscilam menos, já demasiado bêbedos ou pedrados pelas pastilhas de vento. Tentam recuperar a compostura para, no outro dia, se apresentarem à mãe-natureza direitíssimos. Na madrugada seguinte, a única suspeita de que houve agitação noctívaga é a das folhas caídas como copos de plástico das ruas repletas de bares. É dia de sol, estão ressacadas e precisam de água. As famílias que se passeiam no parque nem imaginam a noitada que foi.

terça-feira

Des-Compensado

Sofria de uma personalidade que alguns consideravam hipócrita, outros dúbia, e uns terceiros, instável. Na rua, tinha tanto de simpático como de carrancudo; no amor, era num minuto atencioso, no seguinte desleixado; no trabalho, ora concentrado, ora distraído; na amizade, passava por devoto e por desligado. Os seus comportamentos positivos eram anulados pelos negativos e as atitudes más eram compensadas pelas boas. No fim, era como se andasse para a frente e para trás, em eterno vaivém numa sala de espera, aguardando eternamente que a felicidade o viesse chamar, o que nunca virá a suceder. Apesar da sua muita movimentação, continuava no mesmo sítio, confuso e tonto, dando voltas e voltas sobre de si mesmo.

O Escaravelho

Ao caminhar descontraidamente, detectei, numa pequena poça de água, um escaravelho de carapaça no chão a espernear inutilmente. Sem o meu apoio, teria o bicho uma morte miserável e agoniante de patas para o ar. De bom intuito, virei-o e continuei, feliz com a acção protagonizada. No regresso do passeio, sinto o som do estalejar sob o meu pé. Esmigalhara inadvertidamente o animal, ainda atordoado, que há pouco tinha salvo. Afinal, os desígnios da natureza eram superiores à minha bondade de contrariá-la – fiz essa breve ilação para, numa auto-amnistia, perdoar a minha negligência. Isto do destino é, sem dúvida, uma boa desculpa para a distracção.

quinta-feira

Orquestra de Café

Ao fundo, uns tímpanos e uns pratos de adolescentes a matracar sobre estudos e farras não deixavam ouvir as violas suaves de dois bebés risonhos cujas cordas dos cabelos eram dedilhados pelas suas mães. Entre o grupo de amigos e o das famílias, o trombone de um homem que fala de tudo é abafado pela tuba de outro, com o tom grave de uma aguardente. Sob o lado esquerdo, dois violinos mulheres atrapalham-se e sobrepõem-se numa desafinação que impede o descortino da obra de conversa que elas executam. À direita, um violoncelo casal de namorados faz das suas mãos dadas o arco e toca uma sinfonia sem dó de maior.

Trauma

Perdera-se, ou perderam-no, na natureza selvagem e inóspita. No limbo que unia a vida e a morte, escolhera respirar a deixar-se ficar. Depois da situação limite seguiu-se uma depressão inesperada; de regresso à normalidade, tudo o resto lhe parecia fútil, deslavado, indiferente. Para recuperar o gosto pelo dia-a-dia encheu-se de actividades altruísticas. Através disso conseguiu encolher a sua dor, sobredimensionada, e a dos outros, subavaliada. Uma força inata tornara-o sobrevivente. Uma fraqueza de apatia fizera-o um subvivente. Uma força consciente transformou-o num vivente. E o episódio traumático deixou de condicionar todos os seus movimentos para ser uma cicatriz da qual só se lembra quando alguém a ela aponta.

Manutenção

Uma casa nunca está completa nem nada nela é asseguradamente definitivo. Alude-me as relações humanas, em reconstruções permanentes, onde sempre há um compartimento que, por ter sido desprezado, se desgasta sem que ninguém senão o tempo tenha culpa da corrosão. E é erro os intervenientes fazerem pingue-pongue das responsabilidades quando estas param inevitavelmente na rede do calendário. Sobrevalorizar uma divisão, na habitação ou no coração, por habituação, em desprimor das restantes, desequilibra invisivelmente o quotidiano. É bom, de quando em vez, efectuar uma auditoria aos cantos da nossa vida e uma vistoria às contas que a ela fazemos; depois, nós, donos de casa, praticamos uma limpeza profunda e nós, donas de bricolage, reparamos uma imperfeição. Uns e outros mantêm conforto no ninho de amores e amizades de todos.

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