segunda-feira

Falsas Abstracções

A sua característica de generalizar em larga escala, passando da teleobjectiva para uma grande angular em microssegundos, impede-o de ver qualquer pessoa como especial e exclusiva; esta, de única e ocupando todo o espaço dele, torna-se, num instante, no seu mundo, um ponto de pixel indefinido entre tantos outros. Analítico arrogante e de frieza siberiana assumida, orgulha-se de controlar sentimentalismos que considera comezinhos e preza um ultra-racionalismo que não enxerga ser bacoco. Convencido, tem implícito que é dele a melhor perspectiva que há acerca de todo o universo. Acarinha uma população mundial e toma de desdém um indivíduo. É uma fraude esse abstraccionista, que se vê como humanista, mas não olha senão para o seu próprio umbigo. E fica, no fim, com problemas de visão ao perto e ao longe.

Angústia da Reforma

Era um dos tais garotos que os remediados gostavam de descrever, mais por snobismo do que por pena, como “o puto que passava dificuldades”. Por ausência de herança, mergulhou no mundo do trabalho sem ter estudos de ócio. Por aquelas águas turbulentas andou durante toda a sua vida, a colher uns poucos tesouros que depositava em terra, no baú da sua família. No dia em que decidiu regressar, para sempre, à superfície, tomou-se de náuseas e mal-estares. O corpo, de tantos anos passar submerso em dificuldades, preocupações e responsabilidades reagira mal à inutilidade, descanso e superfluidade. Eram os problemas, e não os prazeres, que o faziam viver.

sexta-feira

Gripe Mundial

Hoje o meu pescoço segura uma cachola com dores, na zona da Rússia, que têm tendências expansionistas. As correntes de má disposição são velozes a deslocarem-se na minha cabeça em água. No Hemisfério da Nova Zelândia, em Inverno austral, há mais frio no meu queixo que fogo na terra a sul da Argentina; a norte, o Verão boreal da doença ferve-me a testa. Pela sua cor vermelha, vê-se que os grandes lagos dos olhos gémeos estão poluídos por um vírus; o himalaia do meu nariz, mesmo sem origem vulcânica, expulsa uma lava verde, venenosa, que queima e desidrata a planície onde deveria estar uma pradaria de bigode; nos lábios, áridos e desertos, não cresce flor de sensualidade nem cor. Esta gripe ameaça o meu crânio, globo em agonia.

Cemitério de Vida

Ao passar, pouco antes das nove da manhã, em frente ao cemitério, observo umas dez pessoas, com pétalas e pólens nas mãos, à espera que os portões abram. Ali via, sem metáforas nem rimas, a verdadeira literatura, a genuína poesia. Naquele espaço associado, ao longe, à tristeza, estava toda a devoção romântica de um ser que ama outro para além da morte – sem promessas nem exageros provocados por paixões extemporâneas. Ao passear, pouco depois das nove da manhã, dentro do cemitério, reconheço que as relações fugidias vão para a vala comum do esquecimento; as duradouras descansam numa sepultura exclusiva e eterna e de flores frescas, cheias de vida.

Nojento

Cospe com a convicção de ter rebuscado todos os fluidos do seu sistema respiratório e arrota depois de ter encontrado todos os odores presentes no seu aparelho digestivo. Trata de efectuar estas expulsões com maior ruído e espalhafato do que as dos seus amigos. Coça-se nos sítios que mais sua, sovacos e virilhas, e leva a mão húmida à cabeça para preservar o cabelo sebento; enfia o dedo indicador por todos os orifícios do corpo, retirando excreções repugnantes e exibindo-as orgulhosamente pensando com isso demonstrar a sua higiene que, à vista de todos, deixa de ser íntima. Um bronco é um autista civilizacional, sofredor de uma cegueira social que, infelizmente, na maioria dos casos clínicos, se prova irreversível. Verdadeiramente grave é o facto da sua doença ser, tendencialmente, hereditária.

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