segunda-feira

Feromona Fraudulenta

De lá para cá vem uma rapariga de vinte anos, vinte anos mais nova, com a beleza irredutível da juventude. Ao passar mesmo a seu lado, ainda mais me embeveci com delicadeza da sua pele. E foi esse o último rasto de formosura que apreciei da moça. À medida que ela se afastava das minhas costas, apercebi-me de que não vinha sozinha. Atrás dela, marchavam uns soldados minorcas mal-encarados e mal cheirosos. O exército envergava espadas banhadas num frasco de perfume barato e, sem condescendência, enfiaram-nas pelas minhas narinas inocentes. Eu, sem um ferreiro – uma constipação ou uma alergia – que construísse uma armadura de ranho para proteger o meu nariz, comecei a sangrar espirros.

Ida ao Hiper

Homem, com calor, sem dinheiro, zero-ponto-zero a beber e a fumar, não é para um bar que vai engatar. Imensas gentes, e mais povoado de mulheres do que de homens, o lugar perfeito é o hipermercado. Fingindo-se atento aos produtos das prateleiras, observa senhoras e raparigas expostas nos corredores. Depois de aturada procura e selecção, o varonil mete no carrinho de personagens femininas as seguintes: uma tem a quantidade que ele precisa, mas vem numa embalagem feiosa; outra nem é cara, mas dá de oferta algo que ele não quer; uma terceira é uma pechincha, mas a validade caduca já para a semana. Nem os sonhos nem a perfeição estão à venda num hipermercado.

Coragem Hierárquica

Nos filmes e afins o herói, que salva a sua vida e a dos outros, é admirado por todos. Nas organizações, a coragem também é valorizada pelos comuns dos colegas. É este o enredo. Nas reuniões com a administração, é duplamente tentador para o chefe intermédio manipular a verdade, à direita, recolhendo os bons feitos dos seus subalternos e, à esquerda, incriminando estes daquilo que corre mal. Lesada nestes modos, a subordinada comunica ao big boss que o superior imediato dela mentia e falsificava os resultados em proveito próprio e não da instituição. A modesta, mas firme empregada arriscou o seu salário ao defrontar o provérbio da corda que rompe pelo lado mais fraco. Foi, porém, bem sucedida. O grande patrão deu-lhe razão e o chefe amansou e humildificou para gáudio de todos. A ela, agradeceram-lhe os companheiros que, sem nada apostar, ainda foram ganhar.

Resignado e Racional

Comecei a tossir. Em vez do coff-coff habitual, saía-me o “Bom dia, daqui fala Jeremia”. Esta vida de telefonista está-me a atacar a respiração. Ninguém acreditava que eu estivesse com tosse, apesar das dores agoniantes que os espasmos do diafragma me começavam a dar. E a saúde agravou quando deixei de ouvir o que o médico dizia. Corrijo: todas as palavras dele se transformavam no tema musical da Nokia nã-nã-nããã…..nã-nã-nããã…...nã-nã-nã…nã…nã. Eu não podia mais. Tecnicamente, depunha-me surdo e mudo. Nunca assistira a um progresso tão galopante de degredo físico. Dentro do meu espírito conformado, mas prático, comecei a fazer considerandos acerca dos problemas que iria ter, quer com a empresa, quer com a seguradora e quer com a segurança social para obter algum tipo de indemnização ou invalidez por doença profissional.

Boca do Mundo

A desbocada diz o tudo e diz o nada. Adoro lê-la. Claro que, por vezes, discretamente, avanço umas páginas sem prestar muita atenção às suas palavras. É uma contadora de histórias para quem tem tempo e não sofre de pragmatismos: a noção de resumo é inexistente e, como todas os episódios são relatados com tanto ênfase e enfeitado com tanto pormenor, o importante e o irrelevante são colocados numa linha plana sem que se distingam. Há quem a maldiga, muitas vezes ela própria. Fala-barato, grafonola, coscuvilheira, beata. Porém eu admiro-a. É que, para além dos méritos da sua memória descritiva, impressiona-me o facto dela, ao narrar tudo com tanto detalhe, não ter dito ainda tudo o que sabe. Se estivéssemos em silêncio, aprenderia mais? Jamais.

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