sexta-feira

Mulher-Árvore

A mulher, na posição de pino, tinha as suas mãos enterradas no chão e os seus dedos a fazerem de raízes. Aos poucos, os nutrientes da terra subiam pelo corpo e neste iam nascendo folhas-sentimentos e frutos-pensamentos; elas e eles iam sendo ora arrancados ora recolhidos pelas pessoas, ora interesseiras ora interessadas. Parada, passavam pela vida da mulher boas e más almas, que queriam benevolamente a sua sombra ou, maleficamente, o seu corpo. A sua forma de resistência era a firmeza. Não a conseguiam persuadir, com ideias ou dinheiros, a alterar a sua natureza de dadora; não a transformariam numa madeira embutida em egoísmo.

Guindastes Astronómicos

À minha volta, só vejo guindastes. À noite, um impele a lua de um lado do céu para o outro. Ao dia, é o Sol transportado do este para o horizonte. Na maioria do tempo ninguém lhes dá atenção. Às vezes, porém, todos ficam deslumbrados com a destreza que os operadores daquelas grandes máquinas têm: não há quem não admire os eclipses solares. Que sincronia! Que competência! Que beleza! Não se sabe qual é a empreitada, mas seguramente é de uma empresa multimundial. Parece até que a obra tão cedo não finda. Toda a gente se pergunta para quê se carregam tantos sóis e luas. Vem o desconfiado afirmar que há quem ganhe muito a empilhar os dias e noites de todos nós. Aparece o trovador a cantar que astros há no fundo do mar.

Despedimento

Envergava, com brio, a bata da companhia. Dizia, com vaidade, onde trabalhava. Sentia orgulho naquilo que fazia, no seu esforço, no tempo da sua vida dispensado à profissão. Foi despedido. Agora, afinal, às tantas, não era importante para a empresa. Executava com esmero a sua função e era só: não se preocupava com as dos outros. Os outros não se preocupavam com a dele e dispensaram-no. Se os outros eram o patrão, o azar, a economia nacional ou a globalização pouco interessa: seguramente foram seus superiores. Com o despedimento aprendeu que não há bem que dure sempre; ao desemprego terá de se ensinar que não há mal que nunca acabe.

terça-feira

Boa Educação

Num jogo de corridas no computador, o miúdo pega no joystick e começa de imediato a acelerar. Em vez de tentar controlar a direcção, vai mais e mais rápido. Bate e bate e bate. Após tantos estampanços, constata que o seu lugar é o último. Modera-se: acalma-se, a si e à velocidade, deixa de sair da pista e vai ganhando posições. Os pais, atentos, apercebem-se deste acontecimento e comentam de imediato com o filho a antiga fórmula “quanto mais depressa, mais devagar”. O garoto entende na pele o conselho e, na próxima vez que estiver em correrias exageradas, melhor compreenderá o aviso da mamã e do papá. Educação é precaver o par-de-estalos-logo-ali com um par de palavras no momento certo.

H-Í-F-E-N

Nós dois, às palavras, atiramo-las ao ar, para as piruetar. Pomo-nos a fazer poesia. E se no-la levarem, far-se-á teatro. Toc-Toc-Toc, bate-se no bicho-da-madeira do palco: águas-furtadas e rés-do-chão, ouçam com atenção: - Escapara-se-lhes, ao par, de amantes, as mais-que-tudo artes? - N-Ã-O!! - Puseste-te de azul-marinho, com água-de-colónia, mostrando-me o além-mar. És belas-artes. Pintemo-nos. O teu auto-retrato: vê-lo-ei em mim mesmo? Amar-te é amor-próprio? Ter-nos-emos mais tarde? Sim, num fim-de-semana prolongado até sexta-feira. Sexta e Feira, palavras que, quando juntas, obtêm outro significado. Ah! Hífen-do-amor-que-une-dois-seres-independentes-e-cria-um-terceiro. Amo-te tracinho. Amo tracinho te.

Mudez Mútua

As pessoas saíram da sala. Foram-se os espíritos individuais e os ruídos sociais. Agora, ficam apenas os dois. Está tudo preparado para um discurso directo, feito sem estranhos, sem excessos, sem interrupções, sem omissões, sem mal-entendidos e sem má-criações Não há testemunhas nem há seguidores, não há empatas nem há traidores. Um e outro nunca tinham estado sós. Prosseguem com um paleio de corte, circunstancial? Ou saltam da passerelle pública, tiram o fraque e a maquilhagem, e se envolvem num striptease de personalidades? Ambos racionais e avessos ao risco, balanceiam entre quebrar a redoma de intimidade ou ampliá-la. Fazem-na um vácuo, onde o som não se propaga. Fez-se silêncio ante todos. Optaram pelo segredo a dois.

Vício Voador

Há uma mosca que voa em círculos dentro da minha cabeça. Ela ignora todas as saídas e mantém-se às voltas e voltas. Não só não sai como, por darem prioridade aos que andam numa rotunda, não deixa ninguém entrar. A esta mosca dou-lhe o significado de “vício” e não a consigo acalmar senão com uma droga. Ainda que não paralise totalmente a besta, ela fica um pouco atordoada e permite que pensamentos normais fluam por uns momentos. Infelizmente, tudo é temporário. Ela regressa. Primeiro silenciosa larva, depois incómoda mosca doméstica, por fim, barulhenta varejeira. Insuportável! Alguém que entre no meu cérebro e lhe corte as asas. Morrer sei que ela nunca vai; pelo menos, que se desloque lentamente e, à medida que for envelhecendo, seja menos e menos importante nas minhas preocupações e vida.

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