quarta-feira

Noticiário

Leio essas notícias, das secções nacional e internacional, e só se me acude o pensamento de viver como um local. Que boa esta pacatez. Lá fora, longe da minha terreola, só há tumultos e tragédias. Não há boas novas?! Haverá, mas escondem-nas dentro de museus porque ambos aparentam ser desinteressantes. Começo a desconfiar que o mundo se me é apresentado enviesado. As misérias precisam de ser cada vez mais bizarras para me chamar a atenção, mas, ao mesmo tempo, afastam-se tanto de mim que deixo de senti-las. Mais uma má notícia. Só me aparecem infortúnios à frente. Penso no mensageiro da catástrofe, também ele triste, o jornalista, que se tornou num espeta dor.

terça-feira

A Armadura

- Qual é o seu segredo para chegar a esta velha idade? - Criei uma armadura intransponível, coloquei-a em mim e nunca mais a tirei. Cem e cem vezes amolgaram o metal, mas não a minha alma; essa permanece virgem, hiper-protegida da investida inimiga. No corpo, não se me aparece ferida nem cicatriz; também ele é imune a malfeitores e malfeitoras. Ninguém me atinge. Sou invencível! - E que inconvenientes tem esse método de defesa? - Infelizmente, a minha pele perdeu toda a sensibilidade. Não tenho ponta de prazer nem de dor. Não toco nem sou tocado por um humano há décadas. Creio que deixei de ser um.

1 peso, 2 medidas

Acordei com uma magreza desmesurada. Atirei a rede para o mar frio do frigorífico e puxei-a, já recheada, com as últimas forças que me restavam. Comi opiparamente. No espelho, apareço com tudo descaído, da gordura: bochechas no queixo, queixo no pescoço, mamas na barriga, barriga na cintura. Decidi não alimentar-me até ao jantar. À noite, novamente em pele e osso, enfardo comida até mais não. Deito-me em digestões de estômago e de culpa. - Ao longo do dia, sofro de obesidade e anorexia – queixei-me. O médico do bom senso sente e consente: - Come muito porque comeu pouco, come pouco porque comeu muito. Uma doença é a desculpa da outra e as duas são suas.

quarta-feira

Dedos de Conversa

- Não suporto aquela gentalha que se deixa convencer pelo mindinho e permite que seja ele a apontar as coisas por minha vez. Há-de pensar que é importante - confidenciou o dedo indicador ao anelar.
- Nem me fales! O polegar agora anda armado em moderno e usa um anel, a imitar-me – replicou o anelar.
- Olha ali o médio, todo empertigado. Chamou-me minorca noutro dia. O altarrudo pensa que é o maior da terreola. Eu já nem faço o estalar de dedos com ele – acusou o polegar.
- Preocupações menores, essas as vossas – disse a mão – Não olhem só para as vossas próprias unhas, não amputem a vossa importância conjunta. Entendam-se, falem unidos, falem para fora, aprendam linguagem gestual.

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