segunda-feira

Inveja, eu?

- Não compreendo porque tem ela inveja de mim! Diz-me, “Ai, sempre que te vejo parece que vais a uma festa” ou “Esses saltos são bonitos, mas mal empregues nestas ruas esburacadas.” Elogia-me com uma falsidade igual à das suas pestanas e unhas. É ela quem se empiriquita diariamente, do cabeleireiro à pedicure. Ainda, vê a lata, põe-se de queixumes se passa um dia em que não ouve piropo masculino. Olha, não é ela quem compra roupa de ocasião; aquilo que ela tem não é pechincha. Só sei que as minhas botas já duram há dois Invernos. Eu é que gostava de ter a bolsa dela, não por fora, feia, mas por dentro, dinheiro.

Importante Insignificante

Contratei uns consultores para analisarem a minha vida. Disse-lhes tudo de mim e eles ricochetearam com um relatório psicológico em que descreviam um indivíduo com as minhas características. Identifiquei-me e gostei. Adorei ter sido o centro de tudo, tantos a pensarem em mim. Satisfação. Satisfação? E se eles escreviam o mesmo para toda a gente?! Ninguém o saberia porque ninguém lia os relatórios dos outros. Quem se interessa pela psique de um anónimo? Pensando por mim, como insignificante e não como importante, concluí que isto de estar tão entranhado em mim mesmo deu-me a mania de ser único. Afinal, não sou único, apenas estou sozinho.

Arrumações

Este pó está comigo há tanto tempo. As suas camadas despertam-me pensamentos acerca da inquebrantável continuidade do tempo. Deixai-o estar. E esta camisola, com nódoas que são marcas indeléveis da minha existência, das minhas aventuras; e irá perder o seu cheiro característico, que agora meu se tornou, se a lavar. E estes lençóis, gelhados e surrados, em que tenho dormido tanto e tão aninhado, são já minha pele. E esta embalagem não a poderei atirar ao lixo; é de um iogurte que elevou as minhas forças físicas, essenciais na agreste luta da labuta quotidiana. Com um espanador de desculpas baratas, pinto-filosóficas, concluí o meu dia não iniciado de arrumações.

Casas

Custou-me tanto sair de tua casa. Mais argumentos para abraços te pudesse dar e mais tos entregava, mais beijos te proporcionasse e mais tos facultava. Acho mesmo que beijei o puxador da porta de tua casa, o último resquício do teu lar. Fui-me embora, tão emocionado que desci as escadas sem esforço, como se viesse de elevador. Ainda assim, desci, desci a esta triste terra cinzenta, opulenta de alcatrão quando eu queria era uma estrada de terra batida, com crateras de três metros e com as quais me pudesse justificar a impossibilidade da minha ida para o meu sítio que não era o meu lar. Custou-me tanto entrar em minha casa.

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