sábado

Stress Aziático

As verdades que são retiradas do seu habitat deixam de o ser e pouco depois morrerão como mentiras. Até lá, contudo, praguejam e destroem as espécies boas da natureza. Enquanto o equilíbrio ecológico e moral não é reposto, essas espécies de índole educada sofrem com sabores amargos, que fazem vomitar vazios e expõem esófago ácidos. A indigestão de falsidades é um envenenamento que causa stress que causa azia. Para não soçobrar perante parasitas, há que preservar um semblante forte, cordial, indefinível, de sofrimento indetectável – tal como os sorrisos dúbios que os orientais têm aos olhos dos ocidentais.

O Comercial

A rapariga tinha o sonho tremendo de ter um carro veloz, mas as contas e os números ultrapassavam-na. O comercial disse, no alto da sua sedução verbal, com promessas fáceis e ofertas de valor ínfimo, que pouco custaria. Fecundou-lhe o desejo e ela acedeu, ingenuamente, carregar com uma dívida que, como feto, começa pequena. Pouco mais tarde descobriu que a gravidez era múltipla – várias prestações insustentáveis. Como cobarde que não assumiu a paternidade, o comercial pisgou-se deixando-a com desculpas e dívidas. A moça não fora explicitamente violentada. Enganaram-na dentro de uma lei que não a moral e tanto ela como a culpa ficaram solteiras.


Obsessão q.b.

Obsessão é de uma colina criar uma montanha. É inchar uma ideia que quando rebenta atomicamente desertifica os arredores. É cruzar os olhos, andar com eles no nariz e não ver onde os pés poisam. É distinguir uma variação milionesimal na mania e menosprezar mudanças óbvias. É não tomar o meio onde vive como seu ambiente. É tomar-se diferente, tornando os outros iguais. É inflacionar o valor de um bem. É escavar à procura da pérola que reluziu e enterrar-se no escuro vazio. É uma motivação que degenera em teimosia e a qual o orgulho se recusa a abandonar. Uma obsessão desconhece o quanto baste.


Empréstimos

Emprestei um bem e foi-me devolvido, intacto e atempadamente, com uma carta de agradecimento autêntica. Dispus, dispuseram, ficámos bem dispostos. Não houve dinheiro nem dívidas nem juros nem favores futuros. Foi uma ingenuidade tremenda que, neste mundo de manhas, nos vamos desabituando. Contratos com cláusulas arrevesadas, informações escondidas, peripécias legais e financeiras e traições indistintas entre profissionais ou pessoais enviesam a partilha e usufruto gracioso de bens. Não se pode ser bom nem aceitar bondade com displicência. Quem empresta, abusa dos seus direitos, quem pede emprestado esquece-se do dever de devolver. Ainda assim ainda empresto. Gosto da gratidão – recupera-me a lembrança longínqua de que os valores morais se sobrepõem aos materiais.

Erro Habitual

Estes valores não coincidem. Sem sucesso, dei voltas para determinar a diferença. Desisto, vou arredondar. São umas migalhas, umas centésimas. Se alguém detectar, poder-me-á ajudar. Feliz, ou infelizmente, ninguém se apercebeu e o problema persiste. Continua a não dar certo e não sei se foi do meu engano anterior ou de outro erro que entretanto se gerou. Vou ajeitar os números, uma vez mais. Uff…ninguém descobriu. Vou prosseguir, aos poucos, com este procedimento. Oh! Fui apanhado! Como justificar? Primeiro, já faço isto há anos, segundo, os meus superiores, que têm por missão controlar as minhas actividades, nunca me avisaram, terceiro, no meu meio, não conheço quem não faça. É o sistema, sabe?

Sono Público

Os meus olhos não se conseguem manter de pé. A cabeça cai, a baba sai, entorto os músculos de tão desajeitado estar na cadeira do autocarro. As acelerações ilógicas e despropositadas do motorista de nada servem senão para me endireitar o corpo que, de tão curvado para a frente estar, auto-enrola-se, à bicho-de-conta. À frente, as nucas das duas senhoras de cabelo apanhado chocalham sincronizadamente; ao lado, neste aquário, o cinquentão torna-se autista, ao bater repetidamente com a têmpora no vidro; atrás, o adolescente deita-se em estilo livre na última fila. Com tantos passageiros a dormir o condutor leva-nos para onde quiser.

Antitique

Não o suporto, funga a cada três segundos. Snif, snif, snif, sem lenço nem de papel perfumado nem de tecido com inicial do nome. Igualmente incomportável é ela que ininterruptamente enrola e alisa cabelo com os dedos de unhas roídas. Impacientam-me ao limite os que, quando com eles converso, tentam completar as frases, imitar os meus movimentos, segurar os meus braços ou mãos ou coçar o nariz, os pêlos do peito, o cachaço e as axilas. Eu, felizmente, não tenho um único tique. Na verdade, e por não ter ponta de diferenciação, ninguém de mim se recorda. Sou tão robótico, tão previsível, tão apático, tão sensaborão, tão inócuo como aqueles almoços que, no dia seguinte, não conseguimos recordar em que pratos consistiram.

O Sofá

Recostei-me e desfizeram-se-me todas as nervoseiras do dia. O sofá rodeou-me e, como cápsula, retirou-me as radiações dos problemas pressurosos que o corre-corre do dia-a-dia me houvera infectado. Agradeci ao sofá, porém ele nem gemeu, nem grunhiu, nem sequer rangeu. Queria agradecer às pessoas que se envolveram naquele objecto, o designer, o madeireiro, o costureiro, o transportador, tantas que nem sei…Agradeci-lhes com dinheiro, é certo, mas certamente também, a distribuição desse dinheiro não é igual à dos agradecimentos que eu daria, de forma mais equitativa. Ninguém pude congratular. Ao contrário dos filmes, que listam no final as pessoas neles envolvidas, desconheço de quem são os créditos da história do meu sofá.


Ao Balcão

Nos modernos centros de atendimento, já não há filas nem, consequentemente, fura-filas. É mais difícil ao simplório enganar outro. A grande empresa engana-os a todos. Eu, um dos crentes e obedientes do rebanho, apontei e disparei num botão que me rechaçou uma senha. Era o A537, prisioneiro dos triopólios das telecomunicações. A lojista sorriu-me com os seus cabelos saca-rolhas a caírem-lhe orelhas abaixo. "Bom dia, Sr. A537. Se é para produtos e serviços, pressione-me os lábios, se é para reclamações, não me pressione." Como eu ia comprar, tive direito a beijar. Para além dessa benesse, ainda tinha uma mensalidade gratuita! E foi assim que fui algemado a uns preços esqueléticos no contrato e obesos na factura. Ao contrário da pildra, primeiro tive a liberdade condicional e só depois fui enjaulado.

Intemporal

Intemporal Ele não tinha tempo. Desses, há muitos, diriam. Não! Não era daqueles que “não tinha tempo para nada”. Ele simples, ou complicadamente, não tinha a noção de tempo. Não nascera fornecido com um calendário biológico. Este homem gatinhava como um bebé ou bêbedo, apreciava muitas mulheres como adolescente ou adúltero e ansiava conduzir como criança sem altura ou velho sem visão. Numa perna, agia como se não houvesse amanhã noutra adia sine die; nuns temas, tinha idade para ter juízo, noutros, era demasiado novo para perceber; para uns, punha-se com mudanças de humor súbitas tanto quanto para outros permanecia imperturbado. O médico disse-lhe “Isso de não ter tempo em si é ilusão sua. Todos actuamos e envelhecemos como o senhor. E vai ver que nem com o tempo isso passa”.

Atestado de Trabalho

O chefe atesta por sua honra que o seu subordinado tem, na presente data, trabalho excessivo, horários apertados, deslocações longínquas e tarefas urgentes que o tornam inapto de contrair qualquer doença – ligeira ou grave –, que o impedem de se deslocar a qualquer consulta médica – geral ou de especialidade –, que o proíbem de efectuar quaisquer exames clínicos – indolores ou penosos – e que o interditam de ser internado em qualquer unidade hospitalar – pública ou privada –. Este atestado é válido pelo número de anos até à reforma, salvo despedimento, demissão ou morte, desde que esta seja súbita e imediata pois, pelas razões atrás expostas, o funcionário, enquanto tal, não poderá ter qualquer enfermidade – curta ou prolongada –.

Sobre-Organização

Prometera a si mesma que arrumaria tudo, tudo, tudo antes de começar a criar arte. Limpou com veemência toda a mesa. E porque não todo o compartimento onde estava? Assim sendo, todo o resto da casa. Decidira depois dispor, meticulosamente, os objectos por ordem de tamanhos. Ou por cores? Fez e desfez o alinhamento e optou por emparelhá-los a gosto. “A arte é inata”, assumiu, “e para concebê-la não posso ficar presa a organizações”. Ficou pronta para começar a fazer o que achava que gostava. Mas agora, com tudo tão direitinho, iria submeter-se a um capricho seu para abanar o primor daquela limpeza exímia?

Divindades

- Que religião professas? - Um sortido de todas. Gosto da islâmica pela caligrafia, da católica pela indumentária, da judaica pela cultura, da budista pelo sorriso, da protestante pelo pragmatismo, da hindu pela sensualidade, da taoista pela serenidade, do xintoísta pelo equilíbrio e da espírita pelo mistério. Sou o contrário de ateu: acredito em tudo o que é deus e deusa e em todos os deuses e em todas as deusas. Cada qual com a sua beleza, o seu deslumbre, a sua atracção, os seus rituais, as suas crenças, os seus defeitos e os seus exageros. Com tolerância e convicção, eu a todas as divindades me devoto.

Eus Siameses

Vamos limpar a agenda das tarefas pendentes há meses, senão há anos. Começo pela primeira e logo arranjo mil justificações para não processá-la. Desisto à dificuldade inicial, mas não sem argumentos de vulto: utilizo conhecimentos de filosofia, psicologia, cultura, história e até genética para não fazer aquilo que eu próprio me proponho – tenho dois lados de mim que nunca ouviram falar um do outro e que não se entendem. São siameses presos pelas costas que nunca se viram e dependem um do outro, ficando sempre no mesmo lugar, querendo os dois marchar para a frente – como têm a mesma força, ficam no mesmo sítio. Constantemente.


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