quinta-feira

O Judoca

Ao assistir a um combate leal de judo, não deixo de me ver, neste corre-corre do dia-a-dia, a caminhar pelas ruas de cinto e kimono ou antes, de ogi e judogi. Felizmente, não fui tomado de atitudes bipolares – estas puxar-me-iam tanto para um lado e para o outro que me auto-abanariam ao ponto de cair sozinho. Considero, portanto, normal a minha estabilidade mental e corporal interior. Porém, cá fora, em sociedade, quando alguém me afronta, subtil ou directamente, sou obrigado a testar essa minha firmeza. Para me defender, tenho então de abalar os seus argumentos e fazê-los tropeçar nas minhas convicções. Assim, na vida como na competição, o que mais interessa é o equilíbrio: transtornar o do adversário e manter o nosso.

Falha de Segurança

Qual é o período máximo de tempo que conseguimos agir acima das nossas possibilidades? É a duração da paixão, para os casos amorosos, é o estágio, para os casos profissionais, e é a convalescença, para os casos de saúde. Damos atenção à pessoa amada, somos criativos no trabalho e seguimos uma dieta saudável. Depois de obter o que queremos, regressamos ao rame-rame do quotidiano. As histórias de separações, desempregos e doenças são alertas que, por serem dados tantas vezes, já não assustam. Tais azares nunca nos calharão. O excesso de segurança que consideramos ter nas nossas vidas torna-nos, paradoxalmente, mais vulneráveis a ataques de infelicidades pois assumimo-los como impossíveis de ocorrer.

Greve Geral

É a greve geral, de duração indeterminada, mais discreta que pode haver: a baixa da natalidade. Hoje, apenas os serviços mínimos estão garantidos: os casais têm somente um filho. Com isso, satisfaz-se a pretensão individual de sermos pais, mas a extensão ad eternum da espécie deixa de ser garantida. Quem é o culpado? O povo português presente. Quem é o lesado? O povo português futuro. O povo português é simultaneamente réu e vítima. Como fazer o julgamento de um elemento que tem esta natureza tão peculiar? A justiça, nestas situações, é auto-reguladora: não se condenam nem se ilibam os suicidas.

O Mendigo

Aquele indivíduo embalado em cartão usado ajeita-se no degrau de uma casa, aguardando a sobrevivência até ao dia seguinte. Depois de jantar, um casal descia a rua e o enamorado, ao habitual acto de cavalheirismo de ir do lado de fora do passeio, acrescentou um outro, o de dar umas moedas ao pobre ali estendido no momento em que a rapariga remexia a carteira à procura de trocos. O indigente agradeceu a dádiva e o par prosseguiu, acrescentando ao sentimento de paixão a dois, o de solidariedade global. Dias depois, acompanhado por amigos ébrios, o rapaz que dera a esmola passa novamente pelo necessitado e, em vez de lhe deixar dinheiro na mão, atira-lhe um cigarro aceso para a barba sebenta. O grupo de jovens imita o acto e riem-se gozões com o feito. “É-se de acordo com quem se está”, considerou, sozinho, o sem-abrigo, não constatando, o próprio, que sem ninguém, é um ninguém.

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