terça-feira

A Pastelaria

Pintura em pastel de pequeno-almoço em pastelaria. O som do vapor da máquina de café, na preparação do galão, leva-me de comboio até ao oriente interior do século XIX. Percorro o corredor estreito entre as mesas e procuro um lugar virado de frente para a paisagem, a parede envidraçada que dá para a rua. Logo aparece uma revisora, trajada de branco, pergunta-me que desejo e deseja-me boa-viagem-apetite. Um homem de bigodaça, certamente natural dos Montes Urais, e habituado a chamar ovelhas em campo aberto, não consegue diminuir o tom de voz ao entrar num espaço fechado. Uma bela senhora entra na carruagem. Preparava-me para ter amável companhia, mas ela saiu na estação seguinte, minutos depois de beber a bica e comprar pão.

quinta-feira

A Lebre

Atenciosa, comunicativa, agradável, bem-humorada. Se a conhecesse mais uns dias, quase a consideraria amável. Engano! Ela é um logro! Ela não se apercebe, mas à medida que vai colocando as cartas na mesa da conversa, logo gasta todos os ases e jokers. Impulsiva e imediata, mais efémera que permanente, está longe das provas de longa distância. Tal como no atletismo, em que um corredor mais fraco – a lebre – obriga os outros, melhores, a aumentar o ritmo, também ela se inicia, nos diálogos, com grande entusiasmo e encanto, mas, pouco depois, cai para a apatia e vulgaridade. Passa de espampanante a desinteressante, de sedutora a sombria. A meio, ou menos, da corrida, desiste ela e desiste quem a ouve.

Falta de espírito

Sentiu alucinar-se quando teve o instinto de segurar uma garrafa que não estava a cair. Juraria que ela se tinha inclinado sozinha. Mas ela não só não tombou, como ficou de pé. Não considerou a loucura porque se mantinha firme em acreditar que a dita garrafa, depois de oblíqua, não se poderia ter recolocado na sua posição inicial, vertical. Duvidar da força da gravidade seria, metafórica e fisicamente, deixar de ter os pés assentes na terra. Atribuiu o desajuste mental ao cansaço, ao sono, à luz, a outro qualquer método de racionalização que tem impedido o desenvolvimento da imaginação supersticiosa e metafísica e tornando mirrada e enfezada uma parte do seu lado espiritual.

terça-feira

Discurso de Dissecação

Não há acção. Não há história numa pessoa sentada, porém, por estranho, há muito que contar. Descrevamos a personagem na sua imobilidade: “a jaqueta de lapela coçada esconde a ligeira elevação do tórax e torna invisível a respiração daquela pessoa de cabelo rarefeito e grisalhourado. Dois ângulos rectos, nos joelhos e na cinta, destoam do redondo das bochechas e da barriga. Os braços cruzados escondem os pulsos e a mão da unha mais branca que translúcida.” O tanto que há para contar ainda que nada se passe. Nem se sabe se é homem ou mulher nem o local onde está. O tanto que há para dizer ainda que não se diga o importante.

A Lenda

É bela a lenda. Pode ser pegada pelo poeta e pelo historiador com a mesma seriedade. A mentira torna-se uma prótese da verdade para que esta caminhe melhor pelos séculos em que ainda há-de ser contada. Desde que se sinta um resquício de verosimilhança no conto, pouco é importante se aparecem duendes ou dragões. A lenda é um placebo para a alma, não se assume que é fantasia e, após lida, constata-se que houve melhorias no estado de espírito. Entre tantas histórias corriqueiras, de formatos tão iguais e diferenças na tonalidades de cor tão ténues, respeite-se a leitura de uma boa lenda que sempre fez bem a alguém.

Manifestações

As multidões têm saído das suas casas de cortinas bem espessas para felicitar ou condenar os representantes do país. Os cânticos junto ao estádio ou à Assembleia da República estão bem estudados. Há mais intervenção popular, sinal de cidadania. Aplaudimos o que consideramos bom e apupamos o que assumimos ser mau. Equilibrados como sempre, participativos como nunca. O voto de voz é mais forte do que a silenciosa assinatura numa petição. O grito de emoção e euforia dura mais do que um sorriso envergonhado e esquecível. Prezo que o povo vá para a rua. Por fim, vamos usufruindo do bom clima que temos.

Quantos somos?

Consumidor, condutor, familiar, profissional, leitor…quantos papéis desempenho eu ao longo do dia? Mudar de registo a cada telefonema, em cada local, para cada pessoa põe a minha personalidade em retalhos. Hora exigente, hora meigo, hora mal-encarado, hora atencioso, hora espalha-brasas, hora silencioso. A pergunta milenar do “Quem sou?” substituo-a pela “Quantos somos?”. A população de mins vai crescendo à medida que vou envelhecendo; contudo, sobre estas personagens, não tenho um chefe nem uma hierarquia por idades ou inteligências. Os vários eus funcionam em rede e pensam no todo antes de cada um pensar no só eu.

Reprovado por faltas

Era atento e interessado, o aluno. A colega de carteira adorava-o e logo aceitaram constituir um grupo, a dois. Desprezou-se a primeira falta, desculpou-se a segunda, descontou-se a terceira, desconfiou-se da quarta. Ele tinha tanta presença e tanta ausência! Sempre que aparecia, era uma delícia de companhia, mas não estava lá sempre. A colega, condescendente, ia-se aplicando no trabalho que devia ser conjunto. Ter algo em comum com ele transformava-se em ilusão. Ela bem dizia que estava com alguém, mas, trimestre após trimeste, sentia-se sozinha. Não conseguiu mais manter a relação. É doloroso chumbar o próprio colega tão cheio de capacidades. A assiduidade conta muito para a nota da felicidade final.

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