sexta-feira

Despertar

Nem mais um minuto. Enervava-se de ficar na cama, na ronha, na preguiça, na sonolência, no calor branco e gelhado. Queria sair depressa dali. Andava com medo de dormir, tinha pavor de se deitar. Levantar-se era um alívio de uma noite dolorosa, de maus sonhos, de intempéries interiores. O corpo requeria algum movimento, mas eram os olhos quem gritavam por pessoas e os ouvidos que exigiam conversas. O silêncio do sono arrepiava-a, aterrorizava-a. Preferia passar o dia cansada, mas acompanhada do que solitária e sem sono. Este mal dormir não provinha da balança da consciência, que media os bons e maus actos do quotidiano. O ódio ao sono era o ódio à sua falta de vida.

Incendiário

Os cigarros iniciaram o incêndio. São como as suas mães plantas ou árvores que não sabem estar caladas umas com as outras e logo divulgam, entre si, as labaredas. Ainda que hoje não haja incêndio, pois isso é programa de Verão, é notório que o quente queima, venha ele do carvão ou de uma emoção. Não nos transtornemos. Aparecerá sempre um bombeiro que, não sendo a causa da chama da paixão, e vindo ele apagá-la, acabamos por dele gostar porque esse guerreiro da paz nos vem salvar. E, de repente, acabamos por nos apaixonar pelas fagulhas e pelas cinzas porque, ao vê-las, significa que sobrevivemos à predação do fogo de um incendiário dos nossos corações.

Poema de Ipanema

Depois do Poema de Ipanema quem é que carece de amor? Nem a musa, nem o autor. O amor passa por aí e se não estivermos descontraídos o suficiente, não o captamos. Na esplanada de um bar, vendo raparigas a irem à beira-mar, amarelas do sol, negros da solidão de não a termos. Venha de lá, bossa nova de camelo velho que guardou tanto amor para esbanjar. E depois dela regressar, atira cabelos louros, salgados tão doces, pelas costas também douradas. Que levitação…: sexual? Não! Quem se eleva é o coração. Dá-me um conto brasileiro, onde tudo parece tão ligeiro e, contudo, é tão tudo. É um sol cheio de graça.

segunda-feira

Velhos em Paz

Não se entendem. Raios! Não se entendem. Duas crianças, quase da mesma idade, sempre à batalha. É certo que uma é rapaz e outra rapariga. Os cérebros são diferentes, mas a espécie é igual. Por natureza, são irmãos e só em adultos se darão na perfeição. Idem para dois países vizinhos europeus, de línguas distintas, mas climas semelhantes, que só agora, no século XXI, se deixaram de se perfurar com baionetas e balas. Séculos e séculos a quererem os brinquedos terrenos do outro e a brincarem com soldadinhos de sangue como se fossem de chumbo. Porque precisa uma pessoa ou uma nação de tantos anos de guerra viver em paz?

Tertúlia Tinto

Olho para o tecto e deixo cair o vinho do copo na garganta. Esta, esticada, está na posição ideal para receber o divino trago da tertúlia. Morno, o tinto leva os barquinhos-palavra no seu leito até à foz. Dezenas de conversas discorrem nas mesas e confluem naquele mar-bar. Arqueologia – descobrem-se histórias enterradas dentro de nós e dos outros, Dança – conhece-se o corpo da música e a música do corpo, Filosofia – o indivíduo é tanto ou tampouco? Literatura e cinema, claro. Temas adoráveis, quase obsessivos…mas, ah! Gestinhos, aromas, maneirismos, problemas e reflexões de pessoas são tão bons de conhecer a três dimensões...

Nova Era

Mudança de paradigma, alteração de comportamentos, reajustamento de prioridades, novas oportunidades. Vão e vêm pessoas mil, vamos e vimos a lugares dois mil, é um vaivém de recepções e despedidas cada vez mais iguais. Tantas cores em tantas almas e em tantos espaços que, sobrepostas, dão um negro desagradável e monótono aos nossos olhos. Estar ligado a tanta gente, tão dispersa, todo o tempo é uma rede onde ninguém se sente sozinho, mas ninguém se sente especial. Com esta história do progresso, não estará a sociedade, e o indivíduo, a procurar a felicidade à sua frente quando ela está por cima? Alterar a vida é alterar de perspectiva. Outra forma, mais bonita, milenar e altruísta de mudar de vida é criar uma.

Dia Não

Assim se propicia um mau dia: um dormir arrevesado, um pesadelo em lume brando e contínuo que, ao longo da noite, queima qualquer espírito positivo, derrete qualquer boa disposição, esturra qualquer alegria. Assim se principia um mau dia: Anti-social. Antipático. Desajeitado. Desatento. Esfomeado. Enervado. Irritadiço. Incongruente. Inconformado. Inoperante. Ineficaz. Irrequieto. Impaciente. Mudo. Parado. Pessimista. Vazio. Violento. Lento. Deixe-se passar o dia de mansinho, não mexer muito nos búzios nem nos astros, olhar para o chão antes de o pisar, conduzir devagar, ficar quieto num lugar. Esperar pela noite, pelo cansaço, pelo sono e pela manhã seguinte.

Feto-Relatório

Pedem-me um relatório. É o embrião da obrigação. Sou eu que o carrego e, por isso, por ele me responsabilizo. Acompanho a medrança do relatório como uma grávida o faz com o feto. Alimento-o de nutrientes gramaticais e levo-o ao relatoriologista que vai avaliando se o seu crescimento não é anormal. Finalmente, o parto, o momento em que ele sai todo de mim. É um alívio perder ali todo o peso da obrigação que me acompanhava até então. O relatório desapareceu da minha vida quando o dei para adopção. Não tive de tratar dele o resto da vida. O pai adoptivo é o meu superior e espero que ele não seja negligente para com o texto que tanto me custou trazer à luz do dia.

Poesia da Pessoa

Porque não me encontro assiduamente com ela? É quem me levita, me anima, me dá disposição de sol. Urbi et Orbi, por aqui e por aí me entrego, movendo-me para cá e para lá, ínfimo ou infinito, astronómico ou abissal. Os meus olhos ficam fixos nela. Ancoro numa nuvem que não pára. Ondulo verde em cordilheiras nevadas. Faço de beira-mar e sou o conjunto amoroso do azul espumoso e da areia ruiva. Chapinho sorrisos em corredores e avenidas. O mundo não é tão monocórdico nem tão descolorido nem tão insosso nem tão asséptico. Tenho de a ver mais vezes. Gosto de lê-la. Literalmente. A poesia. À poesia. Ao assomo de paixão pelas palavras de uma pessoa.

O Desconfiado

Neste mundo lufa-lufa, de tantas pessoas e tão pouco tempo, ninguém se entrega totalmente porque uma relação se pode, já amanhã, dissipar. Nos sentimentos ou nos negócios, pedem-se referências e fazem-se garantias. Desconfia-se. É mais seguro, mas menos altruísta. Ninguém se sente nem ninguém se torna especial. Assumindo, então, que toda a gente está de passagem pela nossa vida, à excepção porventura, de alguma família, como lidar com a confiança? Espalhando-a em diminutas doses por cada pessoa que conhecemos? Assim sendo, mais do que distribuída, ela está estilhaçada. E ser desconfiado de tudo e de todos é um bom princípio para passar o Natal sozinho.

Sedução Verbal

Não maquilhava em demasia a sua conversa. As palavras não passavam por um batom vermelho e verborreico. Havia apenas um discreto lápis de caligrafia cosmética francesa que lhe fizera a silhueta dos lábios; deles saíam espontaneidades e soluções a questões que os homens nem sabiam que existiam. O propósito de um decote de tecido é o de aludir à nudez sem desnudar em demasia. O decote psicológico que ela costurava tomava semelhante efeito. Não mostrava as suas personalidades num só relance; apresentava-as, parcimoniosamente, em contos esporádicos da sua vida. O interlocutor bordador, ao unir os fios das histórias dela com os que ele próprio imaginava, apaixonava-se.

Votações

- Em quem votas? - Essa é somente a terceira pergunta a fazer. A primeira seria “Votas?”, pois o modelo democrático pode não ser o meu predilecto; a segunda seria “Como votas?”, pois também posso fazê-lo em branco ou anulando o boletim. Depois, sim, podes-me questionar, dentro dos partidos, “Em quem vais votar?” Como vês, antes disso, tenho muitas outras decisões, mais importantes, nas quais pensar. Isto é como precisar de um móvel para casa. Primeiro tenho de decidir se devo investir ou não na mobília. Se sim, em segundo, em seguida, vou escolhê-la. Por fim, em terceiro, e já com o armário dentro da sala, é só decidir se o ponho um bocadinho mais à esquerda ou um bocadinho mais à direita. Não é o mais importante.

Totolivro

É um hábito semanal este o de ter esperança. Quero que se me mude o meu mundo de momentos mais-ou-menos para momentos maravilhosos. Na senda desse sonho, toda a sexta-feira, compro um livro à espera que me saia o grande prémio – uma biblioteca -. Infelizmente, ainda nem sequer ganhei uma terminação – uma modesta estante -. Assim, amanhã, uma vez mais, lá vou à livraria. As conversas, enquanto se espera, na fila de pessoas que querem registar na registadora o livro, repetem-se: se eu ganhar, a secção de ciência vai para o meu filho engenhocas e à minha mulher dou-lhe o corredor da arte. E, num acto de solidariedade, tudo o que ficar para mim, é também para os outros. Afinal, só consigo ler um livro de cada vez.

Viva o Vento

Batem-me as portadas e os portões nos tímpanos. Há por aí ventos trezentos a chocalharem-me a casa. Ainda anseio ver aquela rajada mais distraída que se estampa contra a parede e lá fica esparramada. Nunca vi a cara do vento e estou à espera desse momento. O vento tira cá para fora todos os sons que viviam aprisionados em objectos e vegetação silenciosos. Alguns barulhos, de tanto tempo estarem agrilhoados, não se sabem comportar em liberdade e são assustadores. Quanto mais sopra, com menos ar eu fico. Agarra-se-me aos pulmões o medo, que não me deixa respirar livremente, livremente como voa o vento, em meu redor, ali ao relento. A minha redenção é pôr-me lá fora a planar, aproveitar as correntes do ar. E aí, ai sim que sim, serei eu, e não o vento, a assobiar. Não o assobiar nervosinho ou para o lado. É o assobiar de quem, até com as asas nos bolsos, consegue voar.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Who links to me?