segunda-feira

Reclamação-Poema

Ar de pé-rapado, mas sem cheiros de higiene adiada, assim que entrei numa loja, a carantonha do patrão logo me avisou: “Proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço.” Ainda atirei um “Olá” esganiçado, para quebrar o gelo, mas não ouvi resposta. Pedi o livro de reclamações para desenhar a expressão mal-humorada do tipo que não me atendeu. Lembrei-me da má feitura das minhas caricaturas e antes apus um poema:
Se me tratam por Alasca
Ajo à Terra de Fogo
Fria e árdua de contornar
Não havendo um oceano
De sorrisos que nos una
Ninguém virá a conhecer
O calor tropical humano.
“Como vai ou como está?”
Mudez, se não doença, é
Negligência. Sem haver
Má-fé, há má educação
Uma ou outra dá desdém.
Não merecem um centavo
De ouro nem consideração
Gentes que marcam outras
Como dadoras obedientes
De dinheiro. Dois desdéns.
Aos homens que cunham
Pepitas e pedras preciosas
Na pele de outros homens
Dou o troco do desprezo
Numa moeda sem face de
Simpatia e sem a inscrição
De um sentido “Obrigado”
Que sairia se de início
Existira um “Bom Dia”

Acto de Desertificação

A arca frigorífica avariou, o gelo transvestiu-se de água e os peixes, outrora congelados, retomaram a sua vida normal de submersão aquática. Regressados do coma, estranharam estar a nadar junto de ervilhas, coelhos, frangos e pimentos. Os seres vivos terrestres ainda ficaram mais surpresos com aquela vida bizarra, mas depressa se adaptaram. Infelizmente, a arca era irreparável. Pegaram no electrodoméstico, chocalhando animais e verduras no interior, e deixaram-no na berma de uma estrada florestal, junto a um sofá esventrado e um frigorífico amputado de uma porta. Morreram os bichos, morreram os vegetais, morreu a paisagem, morreu o surrealismo, morreu a beleza.

Fim de Refeição

“A comida é uma obrigação bastarda que o meu corpo me deu e a qual eu não posso renegar um dia que seja. À minha volta, restaurantes, pastelarias, talhos e peixarias atiram-me odores que mais me pedem saída do que entrada de comida no estômago. Sonho com comprimidos e bisnagas inodoras que condensem vita, prote, inas e outros ingredientes essenciais. Isto da alimentação lenta é um empecilho, uma perda de tempo e de espaço. Sem ela, seria o fim das cozinhas e dos seus electrodomésticos, dos copos de cristal e das colheres de pau, de…” Aaahhh!!! Que pesadelo tive eu agora! O que o terá causado? Talvez as refeições artificiais e embaladas que em demasia ando a tomar…e a confiar: acredito mais na composição e informação nutricional dos vendedores do que no meu paladar e forma de estar.

Comissionista

Não sou egocêntrico, ainda assim, penso que trabalho pouco para mim. Sinto que a minha mão-de-obra é subvalorizada. É um sintoma de comunista clássico, eu sei. Então, reformulo e passo a interpretar a minha actividade numa vertente capitalista: sou comissionista. Fundamentalmente, medeio o negócio entre o meu patrão e o meu gestor de conta. Consigo retirar um pequeno montante na transferência do meu salário para o abatimento da dívida. Essa comissão permite-me ter uns trocos para comer, vestir e até ter uns luxos soberbos como o de poder comprar outro sabonete que não aquele áspero de marca branca.

Ajuda Externa

Todas as energias estão dentro dele, contudo ainda não conseguiu encontrar um íman que as unisse e as puxasse para uma mesma direcção. Esse íman poderia ser um sonho, um filho, um trabalho que lhe enchesse as medidas, um deus religioso ou outro, um propósito financeiro, uma medalha concedida pela sociedade, um ideal político ou filosófico, uma atitude de cooperação, enfim, uma justificação para sair do seu mundinho. É a motivação que vem de fora o motor que fará das forças interiores desta pessoa um combustível e que a movimentará. Serão somente outras personalidades - e mas nunca as que estão dentro de si - que o farão progredir no conhecimento, compor a obra, por fim, viver.

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