segunda-feira

Oscilações

Há tanto de tudo que, virando-me para qualquer lado que seja, o encontro, o tudo. E o espaço para o silêncio? Tão predilecto para os músicos quanto o é o vazio para os arquitectos e as palavras não ditas para os apaixonados? Dar o não dito pelo dito prevalece sobre tudo o resto. O tudo. Essa imersão aquática onde o que contam são as bolhas que sob a água se formam e que significam respiração, ainda que me apreste a afogar. Procuro a superfície, mas não a superficialidade. Preciso da superfície para viver, mas vivo nas profundezas, rebuscando o que é viver. Que balancear estranho nos dá esta vida.

Morrer de Vergonha

Ao longe, um tipo espalhafatoso, espalha-brasas, despudorado, desavergonhado. Ao perto, um tímido supremo, que não suporta permanecer numa fila porque sente que tira a vez à pessoa que atrás dele está. Este acanhado preparava-se para pegar o último pão da prateleira. Porém, aquele aviltante afastado aproxima-se desse atadinho e, de maus modos, ordena-lhe, passa o pão! Muito esfomeado, mas ainda mais intimidado, o pobre coitado entrega o corpo de farinha. Ainda que enfraquecido pela falta de alimento, o medroso permanece avesso à luta. E serve-se da sua própria fraqueza para se desculpar que está fraco demais para lutar. E as suas sobrantes forças deverão servir para morrer mais tarde e ainda mais fraco. Moribundo. Morreu de fome porque momentos antes morrera de vergonha.

Paisagens à mesa

A manada de escalopes escanzelados, secos e mirrados que nem folhas de Outono acabadas de cair, prostra-se no meu prato. A acompanhar a derreada carne, e ao contrário desta, a selva de brócolos, couve-flor e repolho rejubila de vivacidade, variedade e verde. Arroz e batata à farta entopem o estômago e proíbem a passagem da fome. O lago de água doce, cercado por costas de vidro, vai evaporando com o sol da minha sede. O que foi uma pradaria de pão é agora um mar de migalhas, espalhado pela toalha de nódoas em violeta-tinto-clássico e em molho-castanho- carne-moderno. Completo a volta ao mundo da mesa quadrada com uma pêra do oeste e um arroto chinês.

quarta-feira

Espelho meu

- Sai da minha frente. Aqui estás há duas horas – diz-lhe o espelho.
- Hoje em dia, a imagem é o mais importante para tudo. A primeira impressão é a capa e já ninguém tem tempo para ler o livro.
- Não estarás a exagerar nesse espalhafato visual?
- Porquê estar-se apresentável se se pode ser deslumbrante? Confio nos meus encantos para encantar. E acredito em ti, espelho, espelho meu.
- E quem te diz que eu, espelho, sou a medida de todas as tuas medidas? Dás-me demasiados poderes sobre a tua tão mais-que-tudo idolatrada imagem. E eu posso fazer de ti o que quiser: se me curvo para dentro, engordo-te, se me ponho uma barriga, emagreço-te. Como podes deixar-te depender tanto da opinião de um objecto?! Se tiveres sorte madrasta, ainda te tornas malvada com tanta vaidade.

Cabra-Cega

Ele e ela às apalpadelas, à procura de palpitares amorosos. Conheciam-se de vista, aquela cega forma de se conhecer. Acreditavam ter visto tudo e esqueciam-se de que às vezes a vista não vê mais além. Quando desligaram os olhos, os dois perdidos encontraram-se. A estes dois jogadores de cabra-cega, vendados, ninguém dizia nada. Ninguém os ajudava a unir e tão perto um do outro estavam. Lá se chocaram por incidente e por aí prosseguiram, tacteando-se mais e mais esclarecida e propositadamente. Abraçaram-se com convicção de um amor ao primeiro toque. Foi amor invisual o que surgiu antes de desatarem as vendas.

A Trepadeira

Começou com um abraço, que se prolongou por aí acima. A trepadeira ia-se envolvendo aos poucos com o tronco robusto. Era um casal vistoso, bonito, exótico. Ele gostava de se sentir rodeado por ela; ela adorava crescer à volta dele. A relação desequilibrou-se quando ela o começou a apertar demais, a estrangular as veias nas quais a seiva saudável da sua vida circulava. Ele passara de apoiante a prisioneiro. A trepadeira, que sem ele seria uma planta rasteira, encobriu aquele caule outrora solitário e forte. Fraco e abraçado pela assassina, o vegetal vigoroso transformou-se numa estaca inerte.

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